A expressão máxima do suicídio foi alcançada por Mary Shelley (1797-1851), em seu romance Frankenstein, escrito por ocasião da disputa com Lord Byron sobre quem conseguiria escrever o conto mais horripilante
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No momento em que o suicídio é revelado entre as principais causas de morte, inclusive entre adolescentes, o mundo começa a sentir a necessidade de renunciar ao método da cegueira voluntária para enfrentar a problemática com a atenção que o tema requer. A preocupação com os filhos, acima de qualquer outra aflição, se destaca nessa guerra do homem contra si mesmo. O que parecia isolado, agora nos desafia como uma tragédia que recai sobre uma juventude. A Geração Beat sugeria jogar tudo pela janela, mas a atual vai além, ela se joga pela janela.
O desejo pelo fim da vida pode advir de uma série de fatores, desde as simples decepções amorosas (sentimento que nunca regeu a relação) até as concepções fanáticas em nome de um deus ou de determinadas convicções políticas. É certo que nem sempre o fatídico decorre de um estado depressivo que ultrapassa os limites do suportável, embora este seja o diagnóstico mais frequente. Em alguns casos, o indivíduo é levado a suprimir a sua vida ou a permitir que alguém o faça em um rompante altruísta, no sentido de salvar a sua família ou a própria nação. São os casos, por exemplo, do pai que trava luta corporal com um animal feroz para que seus filhos possam alcançar um local seguro, do mesmo modo que um soldado, no isolamento da trincheira, retarda o avanço do inimigo com o único objetivo de viabilizar a inteira retirada dos seus colegas de farda. Contudo, dispensável o embasamento em dados estatísticos para se admitir que não são as manifestações de amor que costumeiramente levam alguém ao encontro com a morte.
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Alguns dizem que a capacidade de se matar não é restrita aos seres humanos. Há discussões no âmbito científico se realmente o escorpião lança o ferrão em seu próprio dorso quando encurralado por um círculo de fogo ou se essa reação é apenas fruto do imaginário popular. Igual debate se dá em relação às baleias, que inspiram o nome do covarde jogo da Blue Whale. Controvérsias à parte, impossível não recordar os relatos de um veterano da Guerra do Vietnã que, em seu livro sobre o front, comenta a respeito do suicídio dos elefantes que presenciavam a execução brutal dos seus donos durante as incursões dos invasores. Segundo o autor, esses animais costumavam se projetar contra as árvores até sucumbirem em decorrência das sucessivas pancadas na cabeça. De qualquer modo, o certo é que os animais irracionais também reagem de forma surpreendente diante do medo, do desespero e da solidão. O desfecho mais comum é a morte por inanição.
Para Erich Fromm, psicanalista, filósofo e sociólogo alemão (1900-1980), a solidão é o principal motivo do suicídio, e é por isso que o homem tende a se associar a alguma coisa maior do que ele, como uma igreja, um órgão estatal, um partido político, um sindicato ou até mesmo a uma torcida organizada. É claro que alguns exemplos de suicídios coletivos, como os que ocorreram entre os prisioneiros no Gueto de Varsóvia, colocam em xeque essa tese, mas é fundamental ponderar que a solidão também pode atingir a coletividade, independentemente de suas vítimas compartilharem o mesmo espaço físico.
O mundo tecnológico tem afastado o homem dos seus semelhantes. Ao longo do dia, disparamos inúmeras mensagens via Whatsapp com a sensação de que estamos cumprindo a nossa cota de socialização, mesmo quando nas datas comemorativas são encaminhadas aquelas artes enfadonhas extraídas das páginas de busca. Fingindo terem lido, os destinatários agradecerão com um sorriso amarelo (figura ainda não disponível entre os emojis). Jogamos videogame com o mundo inteiro pelo multiplayer na companhia de parceiros sem rosto, enquanto a televisão se impõe como a principal interlocutora do mundo no qual vivemos, construindo, em conluio com a Internet, verdades raramente contestadas. Como efeito, o homem vai se isolando paulatinamente, em razão de não possuir mais a condição de acompanhar e entender o processo de evolução tecnológica que o atropela. Pensar parece não ser mais um de seus atributos. Quem sabe, em um domingo qualquer, o vazio da vida agravado pela perda temporária do sinal WI-FI não nos convidará à covardia da morte?
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Mary Shelley, autora do romance Frankenstein
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A expressão máxima do suicídio foi alcançada por Mary Shelley (1797-1851), em seu romance Frankenstein, escrito por ocasião da disputa com Lord Byron sobre quem conseguiria escrever o conto mais horripilante. Levando em consideração a época que antecedia a Revolução Industrial, nada mais assustador do que a discussão sobre os limites entre o divino e o humano, reabrindo o que há de mais elementar no campo filosófico.
O ser criado pelo cientista Victor Frankenstein não era um monstro, exceto na sua aparência, o que bastou para ser rejeitado pelo seu criador e por todos com quem teve o desprazer de se expor. Por essa razão, passou a viver recluso na floresta, onde teve a chance de contemplar, mesmo à distância, a rotina de uma família de camponeses, experimentando, esporadicamente, a companhia generosa de um ancião completamente cego, que, condenado à escuridão eterna, havia desenvolvido a capacidade de enxergar a beleza da alma. Porém, quando flagrada pelos camponeses locais, a criatura foi atacada e banida exclusivamente em razão de suas feições horripilantes. E foi assim que decidiu abdicar do sonho de ser amado e lançar a sua ira contra o seu criador, exigindo o direito que lhe foi negado, ou seja, o de ser feliz no convívio com os seus semelhantes. Uma companheira apenas bastaria. A relutância do cientista fez com que a criatura fosse tomada de cólera, e assim passou a assassinar os parentes mais próximos de Victor Frankenstein. Ao experimentar a insuportável dor da perda, o cientista se sente castigado por Deus e acaba reduzindo sua vida ao desiderato da vingança, morrendo ao relento, fraco, doente e esquecido. Para a criatura, o fracasso do seu criador não significava uma vitória, mas a dura constatação de que, naquele momento, finalmente estava realmente completamente sozinho, sem qualquer esperança de salvação. Nem um inimigo mais na face da Terra possuía. Perdido em meio a intenso sofrimento mental, conspira para o próprio martírio. Naquele momento, tornava-se o seu pior inimigo. De tudo que havia almejado durante a vida, apenas a morte seria possível conquistar.
Obviamente, Shelley venceu o concurso de contos tenebrosos. Pior do que o sobrenatural, só o que diz respeito à natureza humana. A capacidade de autodestruição é inerente a todos, e não há quem possa se sentir imune às razões que nos levam a antecipar o inevitável. Prudente é aquele que não paga para ver e não vacila ao vigiar seus obscuros impulsos, pois muitos iniciam o processo suicida sem ao menos perceber a lenta ascensão ao cadafalso, seja pelo álcool, drogas líticas e ilícitas, esportes ultrarradicais, excesso de velocidade ou dedicação exclusiva e excessiva ao trabalho. Muitos podem chamar de fuga, mas na realidade é suicídio.
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O homem que se mata entende a morte menos traumática do que a vida; pretende escapar da angústia que as circunstâncias lhe causam; extermina o corpo para aniquilar as lembranças que envenenam os seus pensamentos e degeneram antecipadamente toda sorte que há de vir. Com exceção daqueles que ceifam a própria vida sem querer, na tentativa histérica de chamar a atenção, ou simplesmente no intuito de clamar por socorro, o suicida procura consumar a tragédia com perfeição, muitas vezes digna de um espetáculo cinematográfico, requinte fúnebre que nos faz lembrar os versos de Bocage: “Quando a morte a luz me roube, ganhe um momento o que perderam anos, saiba morrer o que viver não soube.”.
A modernidade fez com que o suicídio saísse dos livros e ganhasse espaço nos filmes. Impossível esquecer o realismo com que o problema é tratado na obra Setembro, de Woody Allen. Na mesma linha, outros ganharam mais notoriedade como os aclamados Ensina-me À Viver, Justiça Para Todos, Nascido Para Matar e Sociedade dos Poetas Mortos. Atualmente, os longa-metragens perderam espaço para os grandes seriados, mas o suicídio continua sendo tema recorrente, a exemplo da personagem Rue, em Euphoria, interpretada pela brilhante atriz Zendaya, além de tantos outros títulos de sucesso, como True Detective, The Handmaid’s Tale, Deuce, 13 Reasons Why, Viking, entre tantos outros. Na música, a banda Pink Floyd chocou o mundo com as cenas de autoflagelação em The Wall, mas foram os seus conterrâneos do Judas Priest que acabaram sendo processados pela justiça inglesa, em razão de um jovem ter se enforcado enquanto ouvia a faixa de um dos seus mais famosos álbuns. Nos anos noventa, o grupo Suicidal Tendences chegou a estar no Top Ten dos Estados Unidos, e nos anos seguintes outros grupos, embora não tenham carregado o suicídio no mome, se destacaram por terem revelado em suas letras a morte como opção, o que se nota na música No Surprise, do Radiohead, sem contar os casos em que os integrantes dessas famosas bandas fizeram com que a vida imitasse a arte, como o saudoso vocalista do INXS, Michael Hutchence (1977-1997).
No ano de 2017, a onda de suicídios promovida pelo jogo Baleia Azul forçou a quebra do tabu na imprensa. Desde então, uma série de matérias passaram a ser publicadas como forma de provocar o debate. Pesquisas apontam que no Brasil o suicídio já deve ser compreendido como uma questão de saúde pública, envolvendo pessoas de todas as idades, incluindo até mesmo crianças na faixa etária de nove anos. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a autodestruição já é a terceira causa de falecimento entre jovens de quinze a vinte e nove anos.
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No caso brasileiro, a miserabilidade humana é de tal ordem que chega a ser tão difícil saber o que leva uma pessoa a se matar quanto a querer estar viva. Claro que não estamos levando em conta a parcela correspondente a menos de um por cento da população, que possui emprego, recebe um salário digno, tem plano de saúde, previdência privada e casa própria. Pensamos na esmagadora maioria que, quando empregada, se pergunta por quanto tempo terá o privilégio de exercer atividade laboral, vivendo exclusivamente para pagar as despesas ordinárias e sem esquecer de manter o telefone desligado para não ser importunada pelas empresas de cobrança. Quando fica sem trabalhar, entra na fila pela disputa pela virada de latas de lixo da cidade em busca de restos de comida estragada. E quem pensa em ingressar no crime organizado poderá se decepcionar ao descobrir que até no mundo da delinquência há escassez de vagas em razão da enorme demanda. Todavia, caso venha conseguir empunhar uma arma, dificilmente passará dos vinte, salvo se considerado o tempo de cadeia ou de balas cravadas por todo o seu corpo.
É verdade que a desgraça financeira não pode ser a única responsável por tirar o brilho da vida. Mesmo entre os mais ricos é possível encontrar muito mais do que treze razões para não desejá-la. Nesse meio é também crescente a desagregação familiar e o estranho orgulho de ser desapegado a tudo e a todos, com exceção daquilo que tenha valor de mercado. O que não pode ser transformado em dinheiro, de nada importa, como maridos e esposas de baixa renda. Não podemos nos ludibriar pelo que se vê no Instagram o no Facebook, nos quais não passamos de um Avatar, desconstituídos de carne e osso, mas sim de uma massa desforme cuja futilidade é a matéria-prima principal. As fotos que intrinsecamente nos enviam mensagens de culto às riquezas materiais e à perfeita compleição física só comprovam a necessidade de camuflar o deserto intelectual e espiritual que nos conduzem ao suicídio. Seria a morte pela segunda vez: a primeira da alma, a segunda do corpo.
Nos primeiros dias do ano de 2020, o mundo foi surpreendido com as notícias sobre uma nova doença que se espalhava pelo território chinês. A pandemia gerada pelo COVID-19 vem causando muito mais mortes do que aquelas oficialmente divulgadas, pois os registros oficiais somente contabilizam os óbitos causados diretamente pela infecção gerada pelo vírus. Independentemente das pesquisas que em breve serão divulgadas, empiricamente já é possível perceber o significativo aumento de suicídios na mesma proporção da proliferação do Novo Corona.
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Não há dúvida de que o vírus mata, assim como é incontestável o fato de que os efeitos decorrentes do desemprego são igualmente fatais e cruéis. Para uma considerável parcela da população, o famoso “fique em casa” desacompanhado do “porque eu te ajudo”, representa uma sentença de morte. Claro que o confinamento doméstico, por si só, não pode ser visto como pena capital, desde que a geladeira do indivíduo submetido ao isolamento esteja abastecida com algum item além de gelo e água, a luz e o gás não estejam cortados por falta de pagamento, e as mensagens de cobrança ameaçadoras não lotem suas caixas de correio física e virtual. Caso contrário, o lockdown não passará de um convite ao suicídio, segundo o qual o indivíduo terá a opção entre morrer, lentamente, de fome, ou, rapidamente, mediante um salto ornamental da janela ao asfalto, “atrapalhando o tráfego”, conforme a música Construção, de Chico Buarque de Holanda.
Detalhe curioso é que para esse mal agora nos assola mais do que em qualquer outra época temos o Direito Penal como aliado. Nos últimos anos, os brasileiros vêm defendendo a criminalização de todos os comportamentos indesejáveis, como se a ameaça da imposição da pena fosse a solução para todos os males. Ocorre que segundo a legislação pátria, o suicídio não é crime, e nem poderia ser. Segundo a corrente doutrinária dominante, para que um fato ganhe o status de infração penal, deve ser típico, antijurídico e culpável, ou seja, definido em lei, contrário ao ordenamento jurídico e que possa recair sobre o autor a responsabilidade penal. A análise quanto à existência do delito precisa ser realizada pela verificação da presença desses elementos, rigorosamente nessa ordem. Não obstante o suicídio ser considerado um fato antijurídico – porque não é dado a ninguém o direito de se matar, levando-se em conta que o Estado deve proteger a vida, bem jurídico indisponível – não é típico. O que está previsto no Código Penal Brasileiro, mais precisamente no art. 122, com nova redação determinada pela Lei 13.968/2019, é o comportamento daquele que induz, instiga ou auxilia alguém ao suicídio ou a automutilação. O indivíduo que o consuma, consequentemente extingue a punibilidade pela morte. A tentativa também não é punível, pois se o suicídio consumado não é crime, a sua forma frustrada não poderia ter outro tratamento. Se o agente pode mais, forçoso concluir que também pode menos. E por amor ao debate, se existisse uma brecha legal para punir o suicida mal sucedido, certamente ele encontraria mais um motivo para renovar o intento ainda com mais precisão.
Chegou a hora de colocar a sociedade no banco dos réus. Quando um indivíduo é asfixiado pelo nó de forca ou se lança em voo eterno do alto de um prédio, não há sequer um único inocente. Qualquer pessoa poderia ter feito algo para tentar evitar. O silêncio diante da agonia alheia, antítese do amor, constitui a prova que nos incrimina e nos condena no tribunal da consciência. Aquele que nega a sua parcela de culpa poderá ver sua própria imagem refletida no espelho sorrindo de desdém, como a personagem criada por Albert Camus (1913-1960), no livro A Queda, que ao passar por uma ponte, ouve o som do mergulho de uma pessoa que se lança às profundezas do rio, mas nada faz.
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Dependendo da concepção que possamos ter da vida, realmente fica impossível compreender o suicídio, e mais ainda desviar alguém desse caminho. Viver significa simplesmente respirar, com ou sem aparelho. Tendo sorte, conseguimos amar, e com mais sorte ainda, do tipo experimentado pelos ganhadores da loteria, alcançamos o êxtase de sermos amados. Por outro lado, quando a ideia do que seja viver passa a ter o mesmo sentido de sermos reconhecidos como seres humanos, principalmente por aqueles nos quais investimos os nossos mais nobres sentimentos, o suicídio caminha ao lado e nos espera na curva. Invisíveis aos olhos do mundo, ninguém notará, exceto os institutos de pesquisa e estatística, a nossa ausência.
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Temos que ser fortes pra passar esta fase e voltar ao contato social físico. Realmente o excesso de social midia e é um tremendo equivoco achar que isso substitui os sentidos faltantes como o toque, o cheiro, o sabor… Concordo que estamos doentes como sociedade e precisamos fazer algo pra ajudar a criar e dar sentido. Arte, religiao, amizade, e dose certa de realismo e cautela. excelente artigo!
Temos que ser fortes pra passar esta fase e voltar ao contato social físico. Realmente o excesso de social midia e é um tremendo equivoco achar que isso substitui os sentidos faltantes como o toque, o cheiro, o sabor… Concordo que estamos doentes como sociedade e precisamos fazer algo pra ajudar a criar e dar sentido. Arte, religiao, amizade, e dose certa de realismo e cautela. excelente artigo!
Concordo plenamente com você Aurélio. Nada substitui as sensações que os sentidos nos trazem.