Nova lei de licitações: Em meio ao espírito punitivista, uma abolitio criminis

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Sergio Ricardo do Amaral Gurgel

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A Lei 14.133, de 1.º e abril de 2021, promoveu uma significativa reforma aos crimes pertinentes ao procedimento licitatório e aos contratos administrativos. Antes dela, os delitos encontravam-se dispostos na Lei 8.666/1993, mas a partir da revogação desta última, as condutas típicas passaram a integrar o próprio Código Penal, em capítulo específico inserido ao Título XI, denominado DOS CRIMES EM LICITAÇÃO E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS, abrangendo os artigos 337-E ao 337-P. Em que pese a maioria esmagadora dos novos tipos penais contemplarem a continuidade normativa-típica, alterando apenas o nome e a topografia das condutas outrora incriminadas, tal modelo não se revela na hipótese em do art. 337-E.

Nova lei de licitações: Em meio ao espírito punitivista abolitio criminis

Comparando o revogado art. 89 da Lei 8.666/1993 com o art. 337-E do Código Penal que o substituiu, é nítida a supressão não apenas do parágrafo único, que continha uma norma tão desnecessária quanto redundante, tendo em vista o disposto no art. 29, caput, do Código Penal, como também da segunda parte da descrição típica do antigo dispositivo legal.

Observando os tipos penais em comento, pode-se afirmar que quanto aos núcleos “dispensar” ou “inexigir” contidos no art. 89 da revogada lei (modalidades comissivas), o novo diploma legal manteve a incriminação, embora o legislador tenha se utilizado de termos diferentes para se referir a situações idênticas. Entretanto, a segunda parte do mesmo dispositivo, ou seja, “deixar de observar” (modalidade omissiva), foi extirpada da norma incriminadora com o advento da Lei 14.133/2021, até porque o legislador, atendendo às inúmeras críticas constantemente difundidas pela melhor doutrina, acabou admitindo que a incriminação de um comportamento que não atente contra o bem jurídico tutelado, sem provocação de qualquer lesão significativa ao ordenamento pátrio, representa verdadeira afronta aos Princípios da Subsidiariedade e da Intervenção Mínima. Como ensina Cezar Bittencourt, “O Direito Penal limita-se a castigar as ações mais graves praticadas contra os bens jurídicos mais importantes, decorrendo daí o seu caráter fragmentário, uma vez que se ocupa somente de uma parte dos bens jurídicos protegidos pela ordem jurídica”. (BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Volume 1 – Parte Geral, p. 12, 8ª Edição, Saraiva, 2003)

Sendo assim, no sentido de adequar a legislação em vigor aos limites impostos pela Constituição da República e aos princípios norteadores do Direito Penal, o legislador reformulou a redação do art. 89 da Lei 8.666/1993 para reavê-lo disposto, em parte, no atual art. 337-E do Código Penal, que traz em seu preceito secundário escala penal ainda mais severa. A nova redação fez surtir o efeito da ultra-atividade em relação à primeira parte do revogado dispositivo legal, por ser norma mais benéfica, ao mesmo tempo em que acarretou a abolitio criminis no que diz respeito à segunda parte. Sobre o fenômeno da extra-atividade da lei penal, que abrange os efeitos da retroatividade e da ultra-atividade da lei mais benéfica, convém destacar os artigos 2.º, caput, e 107, III, ambos do Código Penal.

Acolhendo a tese acima, destaca-se a recente decisão proferida pela Suprema Corte: “Ao que consta nos autos, no dia 16 de junho de 2021, o paciente foi denunciado pelo Ministério Público do Estado do Paraná como incurso nas sanções do art. 89, caput e parágrafo único, da Lei 8.666/1993 (…) A petição de habeas corpus informa que, por ocasião do oferecimento da denúncia, datada de 15.06.2021, já estava em vigor a Lei 14.133/2021, que revogou o art. 89 da Lei 8.666/1993. Se confirmada essa circunstância, estará caracterizado comportamento desidioso por parte dos agentes públicos responsáveis pela deflagração da ação penal, na medida em que a denúncia aparentemente se amparou em dispositivos de lei que, já naquela ocasião, não mais integravam o ordenamento jurídico brasileiro. (Habeas Corpus 219.207 Paraná, Relator Ministro Gilmar Mendes, 29 de agosto de 2022).

Nova lei de licitações: Em meio ao espírito punitivista abolitio criminis

No mesmo sentido seguiu o Superior Tribunal de Justiça reconhecendo também a ocorrência da abolitio criminis no tocante à segunda parte do art. 89 da Lei 8.666/1993: “O cortejo do art. 337-E (CP) com o art. 89 da Lei 8.666/1993 evidencia uma continuidade normativa-típica, já que o caráter criminoso do fato foi mantido, só que em outro dispositivo penal, com uma exceção apontada pela doutrina no que se refere à conduta ‘deixar de observar as formalidade pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade’.” (AgRg no AREsp n.º 1.938.488/SP, relator Ministro Olindo Menezes, Sexta Turma, DJe de 30/11/2021).

Como mencionado no julgado acima, a doutrina, por sua vez, vem comungando do mesmo posicionamento jurisprudencial: “Não obstante a maioria das decisões analisadas caminhe nesse sentido, precedente recente do Tribunal Regional Federal da 3a Região entendeu haver descriminalização da segunda parte do antigo artigo 89, da Lei nº 8.666/93, que tipificava a conduta de ‘dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade’, alcançando, em tese, o comportamento menos gravoso daquele que deixa, por exemplo, de instruir corretamente o processo que levou à dispensa ou à inexigibilidade. Já o artigo 337-E do Código Penal, que o substituiu, disciplina ser crime apenas ‘admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei’. Segundo entendeu o tribunal no precedente citado, ao reproduzir ‘apenas parcialmente a redação do art. 89, caput, da Lei nº 8.666/93’, o legislador ‘não inseriu a segunda parte do preceito primário do artigo revogado no art. 337-E, do Código Penal, o que caracteriza, portanto, abolitio criminis da conduta pela qual o apelante foi denunciado’, no caso, autorizar contratação de empresa para manutenção de veículos da frota municipal sem prévia cotação de preços junto a três outras empresas do ramo. Apontando, assim, a retroatividade da lei penal mais benéfica, o tribunal reconheceu a extinção da punibilidade do apelante, em precedente que deve servir de referência para hipóteses análogas. (LAGO, Natasha do. TAVOLARO, Giovanna Silveira, Revista Consultor Jurídico, 1 de abril de 2022).

No mesmo sentido leciona CALLEGARI: “Sobre a revogação dos crimes da lei antiga, importa dizer que na esmagadora maioria das condutas criminais houve a manutenção da incriminação de determinados comportamentos, agora previstas no Código Penal, por força do princípio da continuidade normativo-típica, sem a ocorrência do instituto da abolitio criminis. No entanto, há uma exceção: a conduta prevista pela segunda parte do caput do revogado artigo 89 da Lei 8.666/93, que previa como crime “deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”, não mais existe. (…) A razão para a inegável abolitio criminis operada pela nova lei se dá justamente no entendimento que discrepâncias formais no procedimento de contratação não comprometem o interesse público nem adquirem relevância penal, sendo mera irregularidade administrativa.” (CALLEGARI, André. FONTENELLE, Marília. Revista Consultor Jurídico, 13 de abril de 2022).

Nova lei de licitações: Em meio ao espírito punitivista abolitio criminis

Por fim, corroborando ainda mais com o posicionamento acima, sustentam os juristas LUCHESI e NAVARRO: “No que se refere ao preceito primário dos dispositivos penais, a nova lei, em sua maior parte, operou continuidade normativo-típica, com a manutenção da incriminação das condutas criminalizadas pela lei 8.666. Consequentemente, permanece hígida a persecução penal dos fatos cometidos antes da vigência desses novos (já conhecidos) tipo penais. A exceção ficou por conta do art. 337-E do Código Penal (‘contratação direta ilegal’), que reproduziu apenas parcialmente a redação do art. 89 da lei 8.666 e, assim, opera-se a abolitio criminis da conduta de ‘deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade’. Observa-se que o art. 89 da lei 8.666 criminalizava as condutas de ‘dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade’. Repare-se que no novo art. 337-E, introduzido no CP pela lei 14.133, criminaliza a conduta de ‘admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei’. O legislador, claramente, deixou de fora uma das condutas criminalizadas pelo revogado art.89 (…) Houve, porém, a abolitio criminis quanto à conduta omissiva própria de ‘deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade’. Disso decorre a incidência retroativa do art. 337-E do CP – na parte que descriminalizou a conduta – mesmo aos processos judiciais com sentença transitada em julgado, conforme determina o parágrafo único do art. 2.º do CP.”. (LUCCHESI, Guilherme Brenner. NAGARI, Maria Victoria Costa. Nova lei de licitações: Em meio ao espírito punitivista, uma abolitio criminis., publicado pelo IBDPE –  Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico em 17 de agosto de 2021)

E para aqueles que pensam se tratar de uma tese sustentada exclusivamente por defensores, convém destacar o posicionamento firmado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo que ratifica as teses supracitadas: “O art. 89 da Lei 8.666/93 punia, além da indevida contratação fora das hipóteses legais, também deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade. Esse comportamento, contudo, não foi reproduzido no art. 337-E. Estamos diante de indisfarçável abolitio criminis (art.  2.º CP). E, para tanto, existe explicação. Houve um avanço na incorporação do processo administrativo e sua importância na Administração Pública. Não se consegue imaginar um contrato sem prévio procedimento. A Lei 14.133/21, nesse cenário, claramente se desprende de formalismos que não comprometam o interesse público, não fazendo qualquer sentido um tipo penal punindo a simples inobservância de solenidades.” (Ministério Público do Estado de São Paulo, CAO – CRIM / Boletim Criminal Comentado n.º 133, abril de 2021, semana n.º 2).

É lição básica em matéria de Direito Penal que a lei que de qualquer modo for mais benéfica para o autor do delito retroagirá, não havendo qualquer empecilho para sua aplicação aos fatos anteriores à sua vigência. Sem sombra de dúvida, o melhor benefício possível sob a ótica do imputado é a revogação de uma lei que considera um fato como crime, compreendendo a hipótese da chamada abolitio criminis. O que antes era considerado crime passa a ser um indiferente penal, segundo a vontade do legislador.  A regra se encontra exposta no art. 2º do CP: “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória”.

Com a criação do art. 337-E do Código Penal, que não reproduziu a segunda parte do revogado art. 89 da Lei 8.666/1993, insere-se perfeitamente na hipótese da causa de extinção da punibilidade em tela . A partir da sua vigência, a conduta deixou de configurar um delito para ficar circunscrito ao âmbito dos ilícitos administrativos. Sendo assim, qualquer denúncia baseada em fatos que se amoldam à segunda parte do art. 89 da Lei 8.666/1993 deverão ser rejeitadas por ausência de justa causa. Em relação aos processos em curso, deverão ser arquivados independentemente de provocação das partes por se tratar de uma questão de interesse público. Em caso de indeferimento do pedido de reconhecimento da ocorrência da abolitio criminis, tanto o recurso em sentido estrito, na forma do art. 581, IX, do Código de Processo Penal, quanto o remédio heróico do habeas corpus servirão de instrumento para restauração da ordem jurídica. E quanto aos processos findos, o trânsito em julgado não impedirá a aplicação retroativa da lex mitior, que fará cessar todos os efeitos penais da sentença irrecorrível.

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Sergio-Amaral-Gurgel.
Sergio Ricardo do Amaral Gurgel é sócio em COSTA, MELO & GURGEL Advogados; autor da Editora Impetus; professor de Direito Penal e Direito Processual Penal; e-mail: gurgelonline@gmail.com

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