Todo indivíduo que opta pela vida acadêmica precisa superar dilemas que o atormentam desde os tempos mais remotos do ensino fundamental.
A necessidade de escolher uma profissão é uma dessas tragédias do cotidiano dos jovens que, em sua maioria, recebem rasas informações sobre as atividades disponíveis no mercado de trabalho. Com pouca idade, e quase nenhuma experiência de vida, os candidatos a uma vaga nas universidades procuram ouvir os conselhos de seus familiares, bem como de outras pessoas que julgam conhecer os caminhos de um sucesso que habita apenas no imaginário. E para muitas carreiras uma das advertências mais comuns refere-se à capacidade de ser desinibido no instante da fala. O domínio da oratória significaria a garantia de um futuro brilhante, tanto no mundo corporativo quanto no âmbito das instituições públicas. Infelizmente, estes profetas da bem-aventurança financeira ignoram os inúmeros significados que gravitam em torno do silêncio, bem como a arte de muito dizer calado.
Não foram poucos os pensadores que se dispuseram a questionar a concepção de que em algum canto deste mundo seja possível constatar a ausência completa de som. Como poderia o gigantesco planeta Terra circundar o Sol, girando em torno de si mesmo, na órbita de infinitos corpos celestes, sem, contudo, fazer um mísero ruído? Aquilo que entendemos por silêncio não seria – como diz meu pai – apenas um barulho acostumado? Contudo, o certo é de que somos tentados ao menos a desconfiar de que o Universo pode ter sido constituído por um arranjo de graves e agudos em plena harmonia, desenhado nas linhas infinitas das claves de fá e sol, como afirmava Pitágoras de Samos (570-475 a.C.) sobre a música emanada do movimento das estrelas.
Nem todo ruído é perceptível aos seres humanos. Alguns cientistas vêm tentando provar que até as plantas emitem som quando ameaçadas pela proximidade das lâminas, mas os supostos pedidos de misericórdia somente conseguiriam ser registrados por intermédio de sofisticados sensores. Enquanto os gritos não forem ouvidos pelo homem, as flores sucumbirão passiva e silenciosamente pelo tronco decepado. É sabido que certas pessoas também suportam o sofrimento caladas, e deixam esse mundo sem o menor gemido. Quem sabe, quando um aparato tecnológico for criado, à semelhança daqueles que captam o pavor das plantas, a dor da humanidade não venha a ecoar na superfície dos mais longínquos astros?
Há quem se sinta desconfortável diante da mudez alheia. Estes postam-se a falar em demasia até que não possam mais ouvir as dissonantes emitidas pela própria consciência. A voz interna costuma ser quase ensurdecedora, e não raramente esbraveja: Culpado! Culpado! Culpado! Em contrapartida, uma minoria desenvolve o dom de aproveitar a redução dos decibéis para aquietar-se, no intento, muitas vezes malogrado, de transformar em melodia a aflição de um pensamento escrito em fusas e semifusas. Costuma ser completamente surda diante dos que falam à toa, ou se empenham em propagar impropérios. Sim, mais de mil anos se passaram e continuamos agindo como Dante Alighieri (1265-1321) havia registrado em seus versos: “falando coisas quando o silêncio seria ideal”.
Não foi somente o poeta florentino que discorreu sobre o tema. Diversos artistas ousaram destacar um silêncio melancólico em suas obras. Na literatura, Graciliano Ramos contou sobre as aflições do confinamento no cárcere e o silêncio dos que faziam de conta que eram inocentes. Sucesso também fez o silêncio das sereias de Kafka no embate com Ulisses. Em relação à música popular brasileira, Cartola queixou-se de amor para as rosas que não falam, enquanto no cenário internacional Simon & Garfunkel viram dez mil pessoas conversando sem falar, e ouvindo sem escutar, na canção “The Sound of Silence”.
Muitos personagens da história universal serão eternamente lembrados em razão de uma mudez qualificada. Pensemos no silêncio de Davi ao encarar Golias; dos soldados no interior do Cavalo de Troia; de Napoleão em Elba; de Michelangelo no teto da Capela Sistina; de Beethoven, em sua última sinfonia; da tripulação do Enola Gay sobre o céu de Hiroshima; de Sartre, ao desvendar “a náusea”; e de John Lenon ao autografar o disco de quem iria retribuir a homenagem com um tiro. E que esses tácitos e magnânimos interlúdios não ofusquem os silêncios menores, como o daquelas senhoras que limpam os banheiros dos shopping centers e dos que dormem sentados nas rodoviárias à espera de um milagre.
A cada vida que se esgota, uma voz é dissipada no infinito. O velório agregará um número significativo de imimigos da quietude. Sem nenhum pudor, não pouparão os familiares com colocações aos moldes de “meus pêsames” ou “meus sentimentos”. E aqueles que já estão cruzando a linha imaginária da loucura encontrarão uma piada de salão para “quebrar o gelo” ao redor da sepultura. Poucos são os que perceberão que não é preciso dizer nada. Neste caso, o silêncio já diz tudo, e um abraço apertado ainda mais. Anos depois, entre feitiçarias e patifarias, aparecerá alguém de coração puro dizendo-se capaz de estabelecer contato com os espíritos que, segundo suas crenças, por aqui vagueiam.
Outro exemplo de perda da oportunidade de ficar calado se dá por ocasião dos términos dos relacionamentos. A cruel revelação do “eu nunca te amei” deveria vir seguida do silêncio da cicatrização, na proporção do desamor vivido. Ocorre que o desejo incubado, quase esquizofrênico, de improvisar uma cena ao estilo de Humphre Bogart, em Casablanca, faz com que frases do tipo “você é perfeito, o problema está em mim”, ou “você é a pessoa certa no momento errado”, ou até mesmo “você é o melhor ser humano que eu já conheci” sejam comumente proferidas. Eis aí uma razão para nos aliarmos a Pascal (1632-1662) quanto à ideia de que “as palavras escondem um mau caráter”. Em situações desta natureza, não é a falta de cultura e de bom senso que determinam o comportamento do indivíduo, mas sim a irreparável corrosão de sua essência sub-humana. Poderia ao menos ter preferido manter aquele silêncio que imperava em sua monótona, entediante e miserável vida sexual.
O silêncio que vem com a morte é óbvio, diferentemente daquele que o antecede. Joana d’Arc, por exemplo, preparou-se para a execução na fogueira mirando um crucifixo, embora tenha gritado por Jesus no instante em que o fogo atingiu o seu corpo. Também foi esse o comportamento de Maria Antonieta, que não perdeu a cabeça ao ser submetida à covardia das acusações de um Tribunal Revolucionário, tão ou mais cruel do que o governo de Versailles. Pergunta-se: o que a rainha, arrancada dos braços de seus filhos, poderia falar para abrandar a fúria irracional de seus algozes? Ora, o mesmo que a família Romanov teve tempo de dizer quando emparedada pela covardia bolchevique: nada! Em muito se assemelhou aos relatos de Leon Trotsky (1879-1940) sobre a paisagem da Rússia antes do início da revolução: “aquela calmaria que antecede a tempestade”. Depois da semibreve, nada mais do que o zunido de lâmina e o estampido de chumbo e pólvora.
Segundo a Bíblia, Jesus Cristo ficou em silêncio quase todo o tempo de seu julgamento. Caifás chegou a questionar a atitude daquele que considerava um farsante blasfemador, perseguidor contumaz da própria execução: “- Você não diz nada em resposta?” (Marcos, 14:60). Por sua vez, Pilatos demonstrou-se frustrado: “Você está se recusando a falar comigo?”. (João, 19:10). E por todo o tempo em que percorreu o calvário, Jesus Cristo não emitiu uma única palavra, nem mesmo quando foi lançado ao chão pelo peso da cruz. Talvez soubesse que o tempo de peregrinação e pregação havia se esgotado. O momento era o de vencer a morte, e, para isso, precisava morrer. Porém, quando crucificado, se insurgiu contra o silêncio de Deus, e murmurou: “ – Pai, por que me abondanaste?” (Mateus, 27:46). E Deus respondeu da forma que nem Maria, nem João, poderiam ouvir. Então veio a resignação: “- Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.” (Lucas, 23:46).
Em outros julgamentos menos famosos, o silêncio dos réus não provocou a dúvida nem o remorso que recaíram sobre o governador romano da Palestina. Nuremberg foi um deles. Os poucos títeres do Füher que lá estiveram se limitaram a dizer que somente cumpriram ordens, transferindo assim toda a responsabilidade ao líder morto. Quanto aos demais termos da acusação, nada declararam. Todavia, no instante em que um filme sobre os campos de extermínio foi exibido, mas, por falha técnica, projetou-se a imagem invertida, os acusados caíram na gargalhada, selando assim o destino por tantos esperado. Hermann Göerin prefiriu o silêncio suicida na própria cela, escapando da agonia das cordas sobre o seu pescoço. Entrentanto, alguns de seus comparsas condenados à morte decidiram romper de vez com o silêncio nos segundos anteriores à abertura do cadafalso. Com o braço direito em riste, soltaram pela última vez o grito de saudação nazista: “Sieg Heil!”. Fato consumado, o Ministro do Exterior britânico decidiu revelar uma verdade que a maioria preferiria ignorar: “O piloto de bombardeiros Harris (da RAF) deve ter mais vítimas na consciência do que qualquer general ou marechal-do-ar alemão.”.
No início da faculdade de Direito o aluno fica um pouco confuso com relação aos efeitos do silêncio. Inicialmente reproduz a máxima do “quem cala consente”, como se fosse algo de caráter absoluto. Com o passar do tempo a norma contida no art. 111 do Código Civil, estabelecendo que “o silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa” vai se tornando clara em virtude do enfrentamento de questões de ordem excepcional.
Em matéria penal, os operadores do Direito também acabam percebendo que em determinadas circunstâncias a ausência de manifestação não terá o condão de repercutir negativamente sobre a liberdade. Aliás, a tacitude não deve ser encarada como uma preocupação exclusiva de quem ocupa o polo passivo na relação processual. Embora não se fale em revelia para o ofendido, o silêncio em determinados momentos poderá mudar significativamente a sua sorte no processo, atingindo a pretensão punitiva estatal, como ocorre nos casos de decadência ao direito de queixa ou de representação, renúncia, perdão, perempção etc.
O Código de Processo Penal, fundamentado no princípio da presunção de inocência, estabelece a regra sobre o ônus da prova nos termos do art. 156: “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer”. Neste sentido, se o Ministério Público, por exemplo, acusar o réu de ter matado alguém, a ele caberá a produção da prova. Em contrapartida, se o réu procurar justificar a sua conduta com base na excludente de ilicitude da legítma defesa, então que procure instruir o processo com o conjunto probatório pertinente. Por outro lado, se optar por ficar calado, deverá assim fazê-lo consciente de que o silêncio não importará em confissão, de acordo com os artigos 186 e 198 do mesmo diploma legal. Do mesmo modo, não se intimidará com a segunda parte deste último dispositvo, na qual o legislador ressalva que o silêncio “poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz”. Obviamente, a norma em tela não foi recepcionada, pois afronta direitos fundamentais consagrados não apenas pela Constituição da República, mas também pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário.
No ambiente jurídico o que mais se ouve é: “na prática, a teoria é diferente”. Isso significa dizer que todo esforço doutrinário serve apenas para auxiliar os pesquisadores em seus trabalhos acadêmicos, bem como enriquecer as editoras. Quando o assunto é o direito ao silêncio, os especialistas na área criminal sabem perfeitamente que o seu exercício fará com que o juiz se incline no sentido da condenação. É verdade que ao proferir sentença não poderá motivar sua decisão no fato de o réu ter permanecido calado no curso do processo, mas provavelmente encontrará outros argumentos para se chegar à mesma conclusão. Seria hipocrisia negar a existência de magistrados que condenam sumariamente os acusados, lançando sobre eles um simples “olhar clínico”, constituído por uma coleção de preconceitos considerados bagagem de sua experiência. Após, procuram argumentos que sirvam de fundamento à sua decisão. Daí a importância do réu que se nega a depor em manter sua esperança de não se deparar com um julgador desta estirpe, mas sim alguém do tipo idealizado por Francesco Carnelutti, ou seja, que a cada dia resgate “o dom de maravilhar-se assistindo atônito o nascer e o pôr do sol, a cada manhã e entardecer, de sentir-se infinitamente pequeno, com o cair da noite, diante da grandiosa e infinita beleza de ver o céu iluminar-se com milhares de estrelas, de sentir-se extasiado com o perfume de um jasmim ou com o canto de um rouxinol”, e ainda, que seja ainda capaz de “reconhecer-se mireravelmente limitado ante cada manifestação do inefável prodígio que é a vida.”. Embora o brilhante jurista italiano não tenha feito menção expressa à questão do comportamento introspectivo, há de se convir que, para esse fim, o juiz também precisará de alguns minutos de paz, considerada por Schopenhauer (1788-1860), o fruto do silêncio.
Nitzsche (1844-1900) dizia ser complicado conviver com as pessoas, porque calar é muito difícil. Oscar Wilde (1854-1900) contribuiu com o raciocínio ao afirmar que “se soubéssemos quantas e quantas vezes as nossas palavras são mal interpretadas, haveria muito mais silêncio neste mundo.” Infelizmente, o homem moderno ainda não aprendeu a silenciar em seu benefício, muito menos em favor de seus pares. Se hoje alguém está calado, não é por contemplação ao belo ou por uma razão que nos convida a engrandecer o espírito, mas somente porque os likes, hashtags e reposts reduziram significativamente a nossa capacidade de comunicação. Agora é hora de voltar ao silêncio daqueles que temem falar em demasia.