Renato Maluf
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Quando este advogado que lhes escreve era criança, cantávamos todos, orgulhosos, o Hino Nacional, no pátio da escola, pelo menos uma vez por semana, olhando para nosso tão estimado vexilo, hasteado. Era lá pelos idos de 1973, nós com sete ou oito anos, e a vida nos sorria. Nem nos dávamos conta de que vivíamos em plena Ditadura Militar, senão de quando em vez, se alguns magotes de soldados, a cavalo ou com tanques, invadiam uma rua onde estivéssemos.
Era o início dos estudos, o anteâmbulo de uma vida toda. Uma palavrinha aqui, outra ali, e eu podia jurar que, em vez de o hino dizer: “De um povo heróico, o brado retumbante”, o decassílabo era “De um povo-herói cobrado, retumbante”. Depois de um tempo, quando começaram a ensinar análise sintática e semântica, vieram no saudável combo as figuras de linguagem, as de literatura, as de pensamento, e então estudamos, entre tantas outras, as anástrofes, os hipérbatos, metáforas, metonímias, hipálages, enálages, etc, e a dúvida ficou esclarecida, mas… o povo-herói, cobrado, talvez seja só reformular a frase, para falar que as margens do Ipiranga devem ouvir (não é possível que não oiçam) o brado retumbante de um povo-herói (enormemente) cobrado.
Vamos aos mitos antigos, porém, pois que se pretende, aqui, pôr Cérbero e as Danaides (o tonel é de tributos e de cobranças no setor privado) sob o crivo da dúvida, já que os mitos atuais vêm sendo alvo dum iconoclasmo outrora inaudito, embora as punições não sejam tão severas quanto esperávamos.
As Danaides eram, como já apontado em nota ao título deste artigo, cinquenta filhas de Danaus ii, que, por imposição do pai, casaram-se com os primos-irmãos e, à exceção de uma, mataram os maridos na noite de núpcias: decapitaram-nos. Sua condenação foi encher um tonel enorme com água, e isso, num primeiro momento, lhes pareceu algo simples. Só depois notaram que o tonel não tinha fundo. A condenação seria eterna.
O apelo à necessidade de nos sentirmos “pelo menos” iguais aos outros e a consectária massificação de hábitos pela mídia traz ao mundo padrões inimagináveis de comportamento e nos impõe uma espécie de condenação interminável: precisamos servir a Mamom iii. Desde as pessoas que são verdadeiros penduricalhos de marcas de roupas, até a imposição de padrões físicos, estéticos, de conduta, de bebida(s), somos achacados sob todos os ângulos, e sem exceção: adultos, crianças, idosos.
O aparelho de ginástica que nos transforma, por milagre, em atletas; o shake que nos emagrece; a marca de roupa que nos faz iguais aos famosos; o café anunciado por glorioso ator norte-americano, vendido em conjunto com a máquina que o prepara; o aparelho de barbear que os ricos & vitoriosos usam; o grill que torna os alimentos mais saudáveis; os bens materiais que nos fazem bonitos/desejados e, entre outras tantas ilusões, as barbaridades do assédio absolutamente inescrupuloso às crianças, com propagandas de brinquedos entre filmes infantis, personagens-heróis (do bem ou do mal) conjugados a alimentos, etc, isso tudo sem falar em vídeos de internet em que os petizes são usados pelos próprios pais em busca de patrocínio (vide a emética e duvidosa “galerinha do brinquedo surpresa”, no Youtube). Hélas!
Quanto à criança, não bastasse toda a proteção que a Constituição Federal lhe garante (só para exemplificar, arts. 227 – o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração… –, 220, par. 3º, II – possibilitar à família que se defenda de propaganda que contrarie o art. 221, cujo inciso IV é explícito: respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família), há o Código do Consumidor (que repudia, em seu art. 37, caput, qualquer publicidade enganosa ou abusiva. O parágrafo 2º do artigo diz que reúne tais repugnantes apanágios a publicidade que explore a deficiência de julgamento e a falta de experiência da criança) e também o ECA, todo voltado à proteção de crianças e adolescentes, e, até onde pude saber, um projeto de lei que permanece no limbo há mais de três lustros, e visa à regulamentação da publicidade dirigida à criança. Isso é mesmo necessário?
No ano passado (2016), um acórdão envolvendo a Bauducco e o ogro-amigo Shrek, parecia haver resolvido a questão da publicidade infantil: o STJ proclamou que ela estaria proibida. iv Não foi bem assim que se deu.
Kelsen (ou melhor, o seu pó, ou seus cabelos, se sobraram) deve remexer-se em sua tumba, pois, se há leis em profusão, a sanção é, para dizer pouco, esquecida. A mídia e a tecnologia em conjunto, no dealbar da chamada quarta revolução industrial, toda tecnológica, fazem a publicidade voar alto feito Ícaro, mas quem despenca, com a cera a derreter nas asas, é o consumidor-tributado, principalmente se depender da velocidade do Poder Judiciário, cujos voos mal acompanham o de uma galinhola americana.
Por que Tântalo, convidado para um banquete no Olimpo, foi punido com o não mais poder alimentar-se? Porque Zeus descobriu que ele subtraiu manjares reservados aos eleitos e os trouxe às plagas terrenas. Por que Prometeu foi acorrentado, e seu fígado era constantemente dilacerado por uma ave de rapina, recompondo-se, para ser novamente consumido? Foi descoberto ao subtrair o fogo (segundo várias análises sérias do mito), também do Olimpo, e trazê-lo aos mortais. Os julgamentos de Zeus eram imediatos, e a cada conduta típica correspondia uma sanção que era atroz e rapidamente cumprida.
Cesare Beccaria, em Dei Delitti e Delle Pene, é obtundente ao proclamar: “Quanto la pena sarà piú pronta e piú vicina al delitto commesso, ella sarà tanto piú giusta e tanto piú utile.” (Par. XIX – Prontezza della pena) v
De uma publicidade apelativa (o que têm a ver os glúteos protrusos, da mulher dita perfeita, com essa ou aqueloutra cerveja?), e que esconde, às vezes, uma venda casada (ou um doce ludíbrio), ao despertar de um desejo inconsciente na mente do consumidor desavisado, não há muita distância. Digam-no os que dependem do SUS, não sabendo que o art. 22 do Código do Consumidor garante serem os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Envolto em tais pensamentos, que punham lado a lado os tributos que pagamos e o abuso dos fornecedores e produtos e serviços, adormeci (eu, mais um no seio daquele povo-herói cobrado), preocupado com a falta de proteção ao cidadão, ao consumidor, a cada um de nós. Sonhei que, feito Dante, havia merecido uma visita, sem compromisso, (mas só) ao Inferno. É que o Diabo anunciara a venda de Cérbero por preço acessível. A foto do anúncio era atraente: o Cão-Monstro tricéfalo, com os dentes arreganhados, salivando…, porém pronto para obedecer a meus comandos. Não se compra Cérbero, mas por alguma desarrazoada razão eu acreditei naquilo. Em meu sonho, brandi meu celular e liguei para o Call Center do Averno,
deixando certo o que desejava. Crente num preço X, que pagaria, reservei o dinheiro em conta-corrente e poderia usar cartão de débito.
Sem um Virgílio para acompanhar-me, aventurei-me pelas ignotas plagas do acolá. E aí começaram os poréns…. Quando cheguei ao Aqueronte, a travessia não estava incluída no preço. Ou eu pagaria mais um X, ou Caronte nem apareceria com sua barca. Aceitei, ou seria levado pela correnteza.
Ao ler, no umbral do Inferno, a famosíssima advertência “Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate…”, podia jurar que ao menos aquilo, para mim, não se aplicaria. Adra irrisão.
O trabalho de Gerión, que eu nem esperava fosse necessário, de me levar ao terzo cerchio (afinal, com Virgílio e Dante ele desceu voando – inda que a contragosto – do sétimo para o oitavo), me foi cobrado também. Quando tangi a aldrava do imenso portal, ele se abriu. Alguns demônios volitavam, com seus tridentes, e eis que vi, logo adiante, o imponente Cérbero devorando seres condenados pelo pecado capital da gula.
Não tive medo, pois que tudo já estava, a meu ver, avençado: era pagar o preço e levar o bicho. Um assessor de Lúcifer (o ‘porta-luz’, todo inteligência), contudo, disse-me que sentasse à frente de sua mesa e foi logo lançando:
– Renato, já vou mandar trazer sua encomenda.
– Hm? (estranhei)
– O seu Cérbero não é o nosso, modelo único, filho de Tífon e Equidna (Em Bulfinch vi, son of Typhaon and Echidna & three-headed dog that guarded the entrance to Hades). O seu é um filhote dele. Nós anunciamos Cérbero, quando falamos em venda, mas pusemos o modelo completo, com todos os opcionais. Avisamos que a foto era meramente ilustrativa.
Não pude crer naquilo, mas em uns instantes apareceu, correndo em minha direção, um cãozinho magricela, porém fofo, com uma cabeça apenas. Ele veio abanando o rabinho e fez festa para mim.
– Ora, não é o que almejo, prezado Senhor. Eu quero Cérbero, conforme anunciado, e não um pet.
-Ah!, mas o anunciado foi uma foto que fizemos do nosso Cérbero, que conta com cerca de 150 itens opcionais, a começar pelas outras duas cabeças!
O susto foi tão grande, que acordei suando, o peito em frêmitos de palpitação.
É assim que o consumidor brasileiro, ‘pluritributado’, se sente, tanto diante das promessas de candidatos em campanha, ou mesmo diante do Estado (nas três esferas) que, por seus representantes, promete e não cumpre. A mesma coisa se dá, mutatis mutandis, quando o consumidor entra numa concessionária de veículos: a diferença entre o modelo básico e o top de linha pode estar em quantidade inimaginável de itens opcionais (!). Não estamos a falar em u’a Maseratti, num Lamborghini, num Jaguar ou qualquer outro em que a escolha faz parte do prazer da compra, mas em carros simples.
É bem sabido que cada caso é um caso, e há respeitabilíssimas opiniões que fazem diferença entre ‘venda casada’ e ‘oferta combinada’, a começar pelo próprio Antônio Herman de
Vasconcellos e Benjamin, um dos autores do Projeto do CDC, passando pela erudita Professora Cláudia Lima Marques. O que não há é sinalagma (nem poderia) nas relações cidadão versus Governo. Cérbero devora os seres ‘gulosos’ que exigem eficiência dos serviços públicos. E os impostos são jogados num tonel sem fundo, ou em fundos mantidos em outros países, ou vão para burras inomináveis.
Se o consumidor, segundo o artigo 22 do Código, tem direitos perante o Estado, embora tais direitos não sejam muito maiores que os de Antígona, perante Creonte, se pensarmos na esfera privada é possível, graças a estudos muito cuidadosos, a começar por aqueles da Professora Cláudia Lima Marques, oferecer versatilidade ao conceito de consumidor, adequando-o à situação de fato: casos que, de longe, podem parecer iguais, não são. Por isso a análise minuciosa das hipóteses concretas.
Pessoa Jurídica pode ser consumidora se, na situação específica, for hipossuficiente, diante, por exemplo, da tecnologia avançadíssima de um aparelho que adquira de um geek. Por que não?
O espírito do Código do Consumidor é proteger a parte fraca da relação jurídica, e o conceito mesmo de ‘consumidor’ é elástico, atendendo a uma interpretação sistemática, lógica, à função social do contrato, à função social da empresa, enfim, a uma série de quesitos específicos que, combinados, hão-de favorecer a quem realmente necessite. Pena que as relações com o Estado não sejam todas regidas pelo Código do Consumidor.
Alguém me perguntaria: ‘Renato, você está falando de contribuinte ou de consumidor?’ E a resposta é simples: se não for hipótese de confusão de ambos ao mesmo tempo e na mesma pessoa, é caso de Pessoa: ortônimo e heterônimos. Ora Alberto Caeiro, ora Álvaro de Campos, ora Bernardo Soares, ora Ricardo Reis, ora Fernando ele mesmo, mas diluído e vivo em cada um dos outros eus.
O que se recomenda ao consumidor que vai atrás de produtos anunciados como Cérberos, mas são Poodles, e aos que vão ao Cérbero-Governo e são devorados, é que lutem por seus direitos e reivindiquem pela lei, e não pela força, aquilo a que fazem jus.
Se a descrição de Cérbero, para Dante, era uma, e a condenação das Danaides é eterna, a verdade é que, pela esfera pública e pela privada, somos decapitados e devorados indistintamente, gulosos de Justiça e com poucas chances de defesa: nossos pequenos alcatruzes vão e vêm, cheios d’água, mas não replenam o tonel. E o cão tricéfalo pode nos devorar no meio-caminho. i Em Thomas Bulfinch, ed. eletrônica cujo endereço declino em iii, abaixo, Danaides, the fifty daughters of Danaus, king of Argos, who were betrothed to the fifty sons of Aegyptus, but were commanded by their father to slay each her own husband on the marriage night. ii Acrisius, son of Abas, king of Argos, grandson of Lynceus, the great-grandson of Danaus – eis aí, em T. Bulfinch, uma referência indireta a ele. A propósito, nesta obra não encontro nem ao menos uma minibiografia de Danaus. Só as referências indiretas. http://www.gutenberg.org/cache/epub/4928/pg4928-images.html iii Mateus, 6:24; Lucas, 16:13 iv http://www.meioemensagem.com.br/home/comunicacao/2016/03/11/paises-que-regulam-publicidade-infantil.html v http://www.filosofico.net/beccari3.htm#del19 vi http://www.gutenberg.org/cache/epub/4928/pg4928-images.html