Doenças criminalmente transmissíveis

 

Entre os crimes contra a pessoa, mais precisamente no capítulo sobre a periclitação da vida e da saúde, encontramos o tipo penal que leva a rubrica de perigo de contágio venéreo. Apesar de sua vigência coincidir com a do próprio Código Penal que lhe deu origem, somente a partir do primeiro surto da AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) passamos a observar um caloroso debate doutrinário e jurisprudencial, que fez oscilar as decisões emanadas dos tribunais superiores. Atualmente, graças ao auxílio do direito comparado, já é possível vislumbrar uma solução mais serena e justa para os fatos que se coadunam a determinados crimes sexuais, embora ainda permaneçamos distantes de um posicionamento pacificado.

O art. 130 do Código Penal revela em seu “caput” a seguinte conduta: “Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado”. Como se trata de crime de perigo, o tipo penal não exige a transmissão da doença, bastando para a sua consumação a mera exposição da vítima ao risco de contraí-la. O elemento subjetivo do tipo é o dolo, não sendo punível a forma culposa. Sendo assim, é imprescindível que o agente tenha consciência e vontade de, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, expor a vítima ao risco de contrair uma doença venérea.

Dispensável torna-se a demonstração de que o agente tinha a intenção de transmitir a doença, o que somente justificaria a majoração da pena pela incidência da qualificadora prevista em seu parágrafo primeiro. Se porventura o agente lograr êxito em seu desiderato, parte da doutrina defende a tese de que o crime passará a ser o de lesão corporal, tendo em vista a técnica jurídica da absorção do perigo pelo dano. Todavia, corrente divergente sustenta, com base nas premissas do Finalismo, que o delito não pode variar de acordo com o resultado. Sendo assim, se o dolo foi dirigido para a exposição de perigo, nesta esteira permanecerá, classificando-se o resultado danoso como um mero exaurimento, sem qualquer relevância no âmbito criminal, salvo no tocante à dosimetria da pena.

Por outro lado, se o agente não sabia ser portador de uma moléstia venérea, nem tinha elementos que pudessem fazê-lo suspeitar dessa condição, inútil será qualquer tentativa de subsunção do fato à norma. Aliás, não são raros os relatos sobre pessoas acometidas de moléstias venéreas, assim como em relação a doenças de natureza diversa, inclusive graves, viveram por um longo período sem qualquer ideia sobre a realidade clínica que lhes cercava. Entretanto, para o cometimento do crime não se faz necessário que o agente possua um diagnóstico emitido por um profissional da área de saúde, muito menos um laudo técnico-científico como resultado de análises laboratoriais. Em muitos casos, algumas manifestações fisiológicas anômalas permitem ao indivíduo concluir, ou ao menos desconfiar, de que possa estar contaminado, como corrimentos, verrugas, erupções na pele, entre outros sinais. A mesma sorte terá aquele que, mesmo sem nenhum sintoma, por exemplo, tomar conhecimento de uma provável contaminação por intermédio do próprio parceiro, com quem manteve relações sexuais sem preservativo, que, espontaneamente, resolve lhe revelar sobre a sua enfermidade. Em situações como estas, pode-se afirmar que, se não sabia ter sido afetado pela moléstia, deveria saber.

Na rotina forense, hipótese muito comum é aquela em que o indivíduo, em tratamento para a cura de uma doença sexualmente transmissível, vislumbra a oportunidade de manter contato íntimo com uma pessoa que há muito tempo vem lhe despertando interesse. E assim, sendo desprovido de caráter, enfrenta o dilema entre dispensar o tão desejado encontro, que se apresenta em momento inadequado e incompatível, ou desfrutar de sua sorte no galanteio em detrimento da saúde daquele com o qual deveria dedicar um mínimo de compaixão e respeito. Seguindo a segunda opção, figurará como sujeito ativo do crime de perigo de contágio venéreo.

Considerando que o crime em tela é de ação penal pública condicionada à representação, a persecução penal dependerá da manifestação de vontade do ofendido em ver o fato apurado. Se a providência não for tomada, nenhum procedimento neste sentido poderá ser iniciado, ou seja, não poderá haver atuação por parte do representante do Ministério Público ou do magistrado, nem tampouco do delegado de polícia, que normalmente acaba sendo o principal destinatário da notitia criminis. E não é nada complicado imaginar situações nas quais a vítima sequer venha a cogitar empreender algum esforço para provocar a ação dos agentes públicos, ou que até mesmo chegue ao ponto de agir de modo a ocultar o ocorrido. Seria a hipótese, por exemplo, de a vítima ter ficado exposta ao risco de contrair uma moléstia venérea em meio a uma relação extraconjugal.  Para ela, certamente, pior do que o perigo ao qual tenha sido submetida, somente a crise conjugal decorrente da instauração de uma investigação policial ou processo judicial. O mesmo ocorreria se o ofendido sofresse o atentado à sua saúde por meio de atos libidinosos praticados em uma relação homossexual, sem que jamais tivesse revelado a alguém detalhes sobre suas preferências mais íntimas. Não querendo fazê-lo naquele momento, não haveria outro meio senão o de abdicar da devida representação, pois, do contrário, além de exposto ao risco de contrair doença venérea, veria sua vida íntima ser devassada por aqueles a quem não deve nenhuma satisfação.

Na doutrina há quem defenda a tese de que o uso do preservativo pelo agente sabedor da enfermidade afastaria o crime por ausência de dolo, e, por conseguinte, de tipicidade. Em contrapartida, outra corrente entende que tudo dependerá do caso concreto, visto que a utilização da camisinha não afasta por completo o risco de transmissão, considerando uma série de motivos, entre eles a ruptura da material em razão da presença de bolhas de ar por geradas por falha no manuseio; má qualidade do produto; deficiência no processo de fabricação; pouca lubrificação; entre outros incidentes mais do que previsíveis. Há de se considerar ainda que o uso inadequado do preservativo seria equivalente à sua dispensa, como se pode notar no comportamento de alguns indivíduos que o utilizam no ato da penetração vaginal, mas o dispensam quando se voltam para a prática de outras modalidades. Com exceção da gravidez, o que mais, exatamente, pensariam estar evitando?

Na década de oitenta, quando os cientistas conseguiram pela primeira vez isolar o HIV, vírus causador da AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), fazendo com que as velhas profecias sobre o do fim dos tempos voltassem a assombrar a humanidade, obviamente a doutrina penal não poderia ter ficado imune. Na ocasião, falar para o paciente sobre a presença do vírus em seu organismo era equivalente a submetê-lo ao cadafalso. O clima de medo extremo afetou os doutrinadores de tal modo, que logo passou a prevalecer o posicionamento no sentido de que o crime de perigo de contágio venéreo não se aplicaria ao agente portador do vírus HIV que realizasse a conduta descrita no tipo, exceto quando desconhecesse tal situação. A tese restou fundamentada no fato de que a AIDS, além de não ser considerada pelos juristas uma doença venérea, em virtude de haver outros meios de contaminação, é uma doença fatal. Assim sendo, o dolo estaria voltado para a destruição da vida alheia, devendo o agente responder pelo crime de homicídio tentado ou consumado, a depender da condição da vítima no momento do julgamento.

A força dos argumentos somada ao pânico instalado pelas constantes notícias a respeito da epidemia, que inclusive fez vítimas no círculo das grandes celebridades, e continua fazendo, contribuíram para que os tribunais superiores contemplassem a ideia do homicídio. E diante deste contexto, muitos réus foram julgados e condenados perante o Tribunal do Júri. Todavia, na medida em que a ciência avançava e a expectativa de vida dos portadores do vírus aumentava, os doutrinadores começaram a rever seus posicionamentos e ponderar uma série de fatores não levados em consideração até aquele momento. O primeiro deles seria o de considerar a AIDS não como uma doença fatal, como já havia sido pacificado, mas sim como uma moléstia grave e incurável. Neste sentido, a prática de relação sexual ou qualquer outro ato libidinoso por quem é portador do vírus HIV se adequaria com muito mais razão ao preceito contido no art. 131 do Código Penal (Perigo de contágio de moléstia grave) que traz a seguinte redação: “Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio”. E na hipótese de a vítima contrair o vírus, mesmo sem se manifestar no organismo, o fato se coadunaria ao art. 129, § 2.º, II, do mesmo diploma legal (lesão corporal qualificada pelo resultado enfermidade incurável).

Em 2010, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, contemplou a inovação doutrinária no julgamento do HC 98.712. Ressaltou-se que o Brasil deveria acompanhar as decisões dos seus vizinhos mais tradicionais em matéria penal, cuja maioria não  classifica a hipótese de forma tão rigorosa ao ponto de permitir a subsunção do fato ao crime de homicídio. Neste sentido, afastou-se a competência do julgamento do réu por seus pares em tais circunstâncias.

Apesar de a solução imbuir-se de razoabilidade, algumas questões ainda são levantadas pelos doutrinadores mais atentos. Uma delas diz respeito ao fato de se aplicar o crime de perigo de contágio de moléstia grave apenas se não ocorrer a efetiva transmissão. Essa corrente argumenta que o delito não pode variar de acordo com o resultado, pois o que se deve ter em mente é o dolo do agente, assim como foi dito em relação ao crime de perigo de contágio venéreo diante de uma concepção finalista. Se o agente guiou a sua conduta para transmitir moléstia grave, deve responder apenas por este crime, ainda que venha ocorrer a transmissão, o que seria considerado um post factum impunível. Em contrapartida, se o dolo do agente era o de transmitir enfermidade incurável, que não precisa ser necessariamente grave, o enquadramento jurídico-penal correto é o de lesão corporal gravíssima nas formas tentada ou consumada. O que não pode ocorrer é a vinculação do tipo penal ao resultado naturalístico produzido. A responsabilidade do agente deverá ser orientada de acordo com uma das hipóteses mencionadas.

O aspecto mais complexo a ser enfrentado pela doutrina reside na dificuldade em se estabelecer a linha divisória entre as condutas de “praticar com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio” (art. 130 do CP), e a de tentar “ofender a integridade física e corporal de outrem” (art. 129 do CP). Embora muitos compreendam a primeira como uma previsão mais específica da segunda, e, portanto, preponderante na aplicação ao caso concreto, em respeito ao Princípio da Especialidade, a explicação não foi capaz de promover o consenso.

Já passou da hora de ser criado um novo tipo penal condizente com as transformações ocorridas nas últimas décadas. A expressão “doença venérea” sequer é utilizada nos dias atuais, substituída por “doença sexualmente transmissível” ou simplesmente “DST”. E em qualquer página na internet, na qual se faça uma pesquisa sobre o rol das doenças sexualmente transmissíveis, a AIDS sempre aparece em destaque. O argumento de que não haveria de ser assim classificada em razão de outros meios de contágio carece de um raciocínio lógico. O fato de o vírus poder ser adquirido por transfusão de sangue, por exemplo, não exclui a sua forma mais comum que se dá por meio de relações sexuais. Além do mais, outras doenças como a Hepatite B, que também podem ser transmitidas de outras formas além da via sexual, jamais deixaram de integrar a lista das doenças sexualmente transmissíveis, que fica a cargo do Ministério da Saúde. Não é a primeira vez que o Direito extrapola seus limites e invade o campo da Medicina.

Ainda sobre o tema, importa destacar que a Lei 12.015/2009 já havia acrescentado ao art. 234-A, do Código Penal, uma causa de aumento de pena para os crimes sexuais prevista no inciso IV: “se o agente transmite à vítima doença sexualmente transmissível de sabe ou deveria saber ser portador”. Recentemente, mais uma alteração sofreu o referido dispositivo com a entrada em vigor da Lei 13.718/2018, mantendo-se a expressão “doença sexualmente transmissível”. Nota-se que há muito tempo já não se usa a nomenclatura “doença venérea”, mas sim “doença sexualmente transmissível”, abrangendo, por conseguinte, a AIDS.

Apesar da criação de um novo tipo penal se mostrar necessária, não se pode pensar que a providência terá um caráter educativo e orientador das relações sociais. Aliás, o Direito Penal nunca desempenhou esta tarefa, e não haveria de ser diferente no que tange aos crimes sexuais. Na própria decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no HC 98.712 acima discutido, o Ministro Ayres Britto destacou, de forma muito oportuna, uma passagem da obra do renomado jurista Paulo Queiroz: “A norma penal não é o começo da socialização, mas a sua culminação. Não é todo o controle social, nem sequer é a sua parte mais importante; é, mais propriamente, como diz Muñoz Conde, a parte visível de um iceberg, em que o que não se vê (as outras instâncias formais e informais de controle) é talvez o que realmente importa, mesmo porque a norma penal não cria valores, nem constitui um sistema autônomo de motivação do comportamento humano.” (QUEIROZ, Paulo. Direito Penal. Introdução crítica, São Paulo, Saraiva, p.09).

Nesse mundo esquizofrênico que estamos vivendo, não faz muito tempo, a imprensa vinha noticiando uma nova modalidade de “roleta russa”, adaptada aos tempos modernos. A forma tradicional consiste na macabra e psicótica diversão na qual duas ou mais pessoas se reúnem com o propósito de disparar uma arma de fogo contra a própria cabeça, após girar o tambor no qual é colocada apenas uma bala. À medida que o revólver for picotando o vazio, os participantes vão se alternando, até que as fórmulas matemáticas da probabilidade possam a ser comprovadas empiricamente.  Havendo morte ou lesão corporal grave, todos responderão pelo crime de participação em suicídio (art. 122 do CP), com exceção do azarento, claro, já apenado pela própria estupidez. A versão mais moderna deste espetáculo bestial substituiu o disparo pela penetração sexual, e a bala pelo líquido seminal. Pessoas que nunca se viram antes  aglomeram-se em orgia sem o uso de preservativo. Para os participantes, o prazer orgástico, potencializado pelo risco de contaminação, os conduz ao verdadeiro clímax.

No combate aos crimes sexuais, assim como nos demais delitos, a norma penal servirá apenas como mais um dos instrumentos estatais. Isoladamente, não será capaz de produzir outro efeito senão o de amontoar presos dentro de um sistema carcerário agonizante. Em um mundo constituído por pessoas dotadas de valores éticos e um mínimo de amor universal, debates desta natureza jamais entrariam em pauta.

 

 

Deixe seu comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.