Luiz Flavio Gomes
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Deputados, senadores e ministros de Estado, dentre outras autoridades, só podem ser processados criminalmente no Supremo Tribunal Federal (STF). Isso se chama foro privilegiado, que é algo absolutamente inconcebível num Estado republicano onde todos são iguais perante a lei.
Há duas iniciativas contra esse absurdo chamado foro privilegiado. Um projeto de autoria do senador Álvaro Dias já aprovado no Senado (por 75 votos a zero) e que agora tramita na Câmara dos Deputados e uma questão de ordem na Ação Penal 937, que está em andamento no STF.
O primeiro extingue o foro privilegiado para todo mundo (nesse “todo mundo” incluem-se cerca de 45 mil autoridades), ressalvando-se o presidente e vice-presidente da República e presidentes da Câmara, do Senado e do STF. A segunda iniciativa restringe o foro privilegiado somente para os crimes cometidos durante a função e em razão dela.
Na questão de ordem referida, depois de oito votos no sentido de restringir o foro privilegiado aos crimes cometidos durante e em razão do cargo ocupado (relator foi o ministro Barroso), o ministro Toffoli pediu vista do processo, ou seja, retirou-o da pauta. Como o prazo regimental (duas sessões) já se transcorreu, o pedido de vista se transformou em “perdido de vista”.
De forma inusitada, Barroso reagiu contra esse tipo de abuso que consiste numa obstrução individual da decisão colegiada e, mesmo sem a conclusão final do julgamento, já está mandando seus inquéritos e processos para a primeira instância.
Um inquérito aberto contra o deputado Beto Mansur, por exemplo, acaba de ser enviado para a Justiça Federal de Santos, onde o crime de sonegação fiscal (cometido antes das funções parlamentares) teria ocorrido. Barroso não esperou o término do julgamento, porque já existem oito votos no sentido da restrição do foro privilegiado.
Adotando postura semelhante, o ministro Marco Aurélio, por meio do Estadão, deu 30 dias de prazo para Toffoli devolver o processo. Se não o fizer, da mesma maneira, vai mandar todos os seus inquéritos e processos para o primeiro grau, salvo os crimes cometidos durante e em razão da função.
A atitude inovadora de Barroso e Marco Aurélio, embora sem expressa previsão legal, é moralizadora e muito acertada. Quando uma maioria no julgamento colegiado já foi formada, é um absurdo que a vontade de um único ministro, abusiva (porque já fora do prazo regimental), possa obstruir a vontade majoritária da Corte.
A preservação no Supremo dos inquéritos e processos que não são da sua competência só estimula a vergonhosa impunidade daqueles que gozam de foro privilegiado no nosso País. A busca da certeza do castigo (da eficácia da lei para todos) justifica o ato rebelde dos ministros insurgentes, que já não são o juiz natural do caso.
A Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, interpôs recurso contra a decisão de Barroso, entendendo que os processos devem “continuar tramitando no STF” até a conclusão final do julgamento. Isso significa apadrinhar a imoralidade e a ilegalidade do pedido de vista (quando o processo não é devolvido no prazo regimental) e, ademais, acobertar um ato ilícito, porque essa demora gera com frequência a prescrição do delito.
A segurança jurídica corre risco não quando se enfrenta um abuso inconteste, e sim, quando se incrementa a impunidade dos donos corruptos do poder, que é uma realidade gritante no caso do STF. A sociedade brasileira já não tolera esse tipo de tratamento privilegiado para a “aristocracia” delinquente.