As razões de um inocente confesso

 

Não é apenas por uma questão de vaidade que sinto necessidade de me dirigir a milhões de pessoas com o fim de me apresentar. Na realidade trata-se de uma busca desesperada no sentido de estabelecer um ponto de partida para o exercício do genuíno direito ao contraditório e ampla defesa. Sinceramente, e com grande pesar, creio que ainda será necessário repetir esta constrangedora formalidade por muito tempo, até que todos que se sujeitam à minha autoridade fiquem totalmente curados do mal que gera a perda repentina da memória. Por oportuno, antecipo o meu pedido de desculpas se nesta empreitada, em algum momento, for quebrado o protocolo inerente aos discursos acadêmicos, mas espero que compreendam que não é tarefa das mais fáceis manter a elegância quando somos constantemente esquecidos, e invocados apenas na hora de assumir responsabilidades.

Alguns dizem que tenho idade avançada, mas ainda me sinto tão forte quanto me encontrava nos melhores dias da minha juventude. E apesar de muitos estarem tentando me enterrar vivo há mais de vinte anos, as circunstâncias evidenciam que o meu ardor viril continua inabalável. Afirmo, sem qualquer receio de parecer injusto, que em nenhuma outra ocasião trabalhei de forma tão sistemática, nem poderia imaginar atender a uma clientela tão diversificada.

Nasci em 1940 em meio à ferrenha ditadura do Estado Novo, implantada à imagem e semelhança dos Estados Fascistas que se espalhavam pela Península Ibérica e pelos imponentes alpes da Baviera. Meus pais, pessoas de muitas posses, eram positivistas, e viam em mim a esperança de fazer valer a ordem que, ao menos naquele período, parecia ser necessária ao progresso. Confesso que até alcançar a maioridade, foram poucos os que ousaram me procurar. Por um tempo cheguei a pensar que somente pobres e desajustados tinham interesses em mim, embora na década de 70, com a revolução sexual, muitos cônjuges enciumados, mesmo pertencendo às classes mais abastadas, perderam a cabeça e acabaram tendo que conviver ao meu lado por longos anos. Mesmo assim, apesar das grandes somas de dinheiro que me cercavam, sempre fui visto como uma má companhia. Minha mãe, usando de sua notável experiência de vida, baseada na mais pura cultura latina, já havia me alertado: “- Diga-me com quem andas, e eu dir-te-ei quem és!”. Infelizmente, apesar das advertências, a imagem que firmei perante os outros ficou associada ao submundo das drogas, prostituição e todo tipo de degradação.

Aos quarenta e três anos sofri tanta pressão que precisei reformular uma série de conceitos que até aquele momento me pareciam imutáveis. À medida em que a Guerra Fria ia chegando ao fim, e os presidentes de farda foram se tornando dispensáveis na América, ao mesmo tempo em que os milhares de tijolos que rasgavam Berlim ao meio viravam artigos de souvenir, fui levado a rever muitas de minhas teorias. Abandonei antigos ideais e me tornei menos pragmático, bem mais atento às questões voltadas para o homem. Aquilo que passa em sua mente no momento em que realiza determinados comportamentos era o que mais me intrigava. Aliás, que saudades dos Anos 80, época da camisinha, dengue hemorrágica, Plano Bresser, retorno dos exilados, new wave

Atualmente minha sorte vem mudando. Tenho feito bastante sucesso em todas as classes sociais. Deixei de ser exclusivo das favelas cujas ruas não tem nome e passei a frequentar os hotéis cinco estrelas que vendem água mineral por irrisórios três dólares, bem como clubes de golfe, associações hípicas, e até os altos escalões do governo. Agora não sou mais visitado apenas por moleques de rua com os pés descalços, tornei-me amigo inseparável das autoridades policiais, políticos, líderes religiosos, médicos, entre outros ilustres cidadãos letrados. Minha ascensão neste mundo estratificado é de causar inveja a qualquer um.

Apesar de tantos anos de serviço prestado ao povo brasileiro, apenas quando atingi a terceira idade é que começaram a notar a minha existência. Não posso dizer que hoje eu me sinta realizado, pelo contrário. Se em tempos remotos eu trazia o mal em meu âmago, agora querem lançá-lo com toda a força sobre o meu caráter. É o preço que pago pela forma que me autorizaram a solucionar problemas a que não dei causa. Não há como duvidar de que a imprensa contribuiu bastante na composição desse requiem que se anuncia ao som de cuícas, pandeiros e tamborins, mas o certo é que a revolução tecnológica tornou-se a maior responsável pelo linchamento público ao qual fui submetido. Mas tudo bem, não há tempo para drama! Aceito o meu castigo! Se merecido ou não, também nunca me importei. Isso cabe aos juízes, que têm a cruz bem acima da cabeça. E que os tribunais não ousem me contradizer, pois ainda não surgiu quem entendesse mais sobre penas do que eu. Eu as criei!

Como o meu fim que se aproxima, encerra-se também o martírio de ter que ficar me justificando por coisas que eu não fiz. Recentemente paguei um preço altíssimo pelo fato de o Supremo Tribunal Federal não ter declarado inconstitucional o decreto presidencial que concedeu o indulto para um punhado de condenados por corrupção, entre os quais, alguns vilões da Operação Lava Jato. Fiquei me perguntando de que forma eu poderia ter concorrido para tamanho desastre. Não inventei esse miserável instituto! Aliás, nem mesmo o regulamentei! Caso se dessem ao trabalho de consultar a Lei de Execução Penal constatariam que eu não estou faltando com a verdade! A clemência estatal é originária do texto constitucional. Sim, estou me referindo à Lei Maior, aquela também conhecida como Constituição Cidadã, e que recentemente recebeu inúmeras homenagens da imprensa pelos seus trinta anos de vigência. Para quem a conhece sabe que os únicos crimes insuscetíveis de indulto são os hediondos, assim considerados pela Lei 8.072/1990, além de três outros por efeito da equiparação: tráfico, tortura e terrorismo. Já era para eu estar habituado. Lembro que em 2002, quando o Presidente Fernando Henrique Cardoso extinguiu a pena do ator Guilherme de Pádua, condenado pela morte de sua colega de trabalho Daniela Perez, quase fui apedrejado. De todas as formas tentei avisar que, na ocasião, o homicídio qualificado não era destacado pela hediondez, mas o meu esforço foi inteiramente em vão. Meu nome saiu em todos os jornais e minha cabeça ficou a prêmio mais uma vez.

Eu também virei notícia em escala mundial quando um adolescente conhecido como Champinha admitiu ter assassinado brutalmente um casal de adolescentes. Sinceramente, não sei como sobrevivi àquele episódio. Se me vissem na rua, até as senhoras de idade avançada seriam capazes de me fazer arder na fogueira. E não apareceu ninguém para dizer que eu era fruto do meio, subproduto de uma sociedade perversa e doente, que isenta de pena o menor de dezoito, independentemente do mal que tenha causado. Que chamem o legislador constituinte para explicar os critérios utilizados, bem como o ordinário (legislador) para fazer o mea culpa sobre as medidas socioeducativas.

Gostaria ainda de aproveitar a crescente onda de delações para falar sob juramento que embora eu tenha ajudado a conceber a progressão de regime, não instituí a regra que permitiu José Dirceu a trabalhar no semiaberto desde os primeiros dias do cumprimento da pena. Isso jamais foi dito por mim! Também não tive nenhuma participação no fato de Suzana Hitchtoffen ter obtido o benefício da saída temporária no Dia das Mães, muito menos na autorização dada ao goleiro Bruno para se dedicar às aulas de futebol infanto juvenil. Por outro lado, admito que eu estava na frente do juiz quando Doca Street foi absolvido, mas em nenhum momento defendi a tese da legítima defesa da honra. E antes que eu me esqueça, preciso ainda dizer que não tenho nada a ver com a negativa de extradição a Cesare Battisti. Enfim, afirmo que se a minha pena for reduzida em pelo menos um terço, assino agora o termo de colaboração premiada!

Realmente é melhor sair de cena enquanto todos estiverem distraídos. Fico imaginando o que aconteceria comigo se descobrissem que o Congresso Nacional tem o poder de apagar fatos delituosos como se nunca tivessem sido praticados (anistia), estabelecendo como limite somente aquilo que já foi dito a respeito do indulto; que todos os crimes prescrevem, exceto racismo e ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; que condenações até quatro anos de pena privativa de liberdade, na maioria dos casos, são substituídas por penas de multa e restritivas de direitos; que o juiz pode atenuar a pena em razão de qualquer circunstância anterior ou posterior ao crime, mesmo que a hipótese não esteja prevista em lei; que uma série criminosa pode ser entendida como delito único para efeito de aplicação de pena; que pessoas condenadas por homicídio doloso podem pegar somente quatro anos de prisão a ser cumprida desde o início em regime aberto; que a lesão corporal gravíssima, na qual o agente fura os dois olhos da vítima, corta sua língua, estoura seus tímpanos, corta seus braços e pernas, se sujeitará no máximo a oito anos de reclusão, enquanto aquele que oferece vantagem a um policial para ser liberado de uma Blitz, em razão de estar com o IPVA vencido, poderá pegar até dezesseis anos; que o sujeito casado que contrai novo casamento é severamente punido, sem qualquer respeito ao princípio do non bis in idem e não incriminação aos casos de autoflagelação. Quanto a essa última hipótese, peço sinceras desculpas! Não passou de uma tentativa frustrada de tornar o ambiente mais ameno diante de tantas notícias tristes; uma pitada de sarcasmo para “quebrar o gelo”.

Neste momento que já entrei na casa de todos, seja por intermédio da televisão ou da visita inesperada da polícia, sem qualquer discriminação quanto à etnia, religião e condição social, desejo me apresentar de um jeito menos engessado, livre das tradições impostas por esta geração atolada até o pescoço em tanta hipocrisia. E considerando que a minha existência está diretamente relacionada a um espetáculo midiático, a um show de horrores em todos os seus aspectos, peço permissão para usar da música Sympathy for the Devil, de autoria dos notáveis rolling stones, que tiveram a coragem de interpretar o Anjo Caído em primeira pessoa: Pleased to meet you, hope you guess my name!

 Espero que não estejam se vangloriando por terem acertado, porque depois de tantas pistas, até os parlamentares da Comissão Warren, que tiveram a capacidade de atribuir toda a culpa do assassinato do Presidente Kennedy a Lee Oswald, também desvendariam o mistério em torno da minha identidade. Eu sou um simples corpo decrépito composto de trezentos e sessenta e um artigos. Não tenho alma, nem tampouco compaixão ou remorso. Guardo comigo a mesma ira e o pranto sem lágrimas identificado em minha clientela. Se para os transgressores sou muito, para as vítimas sou pouco; se para os tolos sou tudo, para Deus não sou nada; e se para todos sou culpado, para mim, exclusivamente para mim, sou completamente inocente. Tenho dito! Código Penal.

 

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