Kiyoshi Harada
O PT sempre teve mania de estabelecer um mecanismo paralelo. Quando na oposição, sem lograr conquistar o poder apesar de inúmeras tentativas, criou um “governo paralelo” para monitorar as ações do governante legitimamente investido no cargo.
Agora que está no poder desde 2002, a governante criou, por Decreto, um poder paralelo a pretexto de colher as participações populares. Confundiu participação popular com projeto de poder. Para isso baixou o Decreto nº 8.243, de 23-5-2014 instituindo a Política Nacional de Participação Social e o Sistema Nacional de Participação Social, prevendo a “participação” da sociedade civil, vagamente definida como “o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações”. Uma definição ambígua e perigosa que inclui a Internet! Você já imaginou um governo dando execução à política pública com base nos palpites dos internautas?
O decreto como instrumento normativo
Como ficam os planos de ação do governo aprovados pelo Congresso Nacional e refletidos na Lei Orçamentária Anual? O orçamento anual deixaria de refletir a vontade da maioria da sociedade brasileira expressa por meio de seus representantes legitimados pelo voto popular. A sociedade deve ser ouvida antes da aprovação final do plano de ação governamental. Uma vez aprovado esse plano pelo Parlamento Nacional não se pode alterá-los mediante utilização de mecanismos instituídos por ato presidencial como pretendido por esse Decreto sob exame. Se o governo é incapaz de auscultar a opinião pública antes da elaboração do seu plano de ação governamental não faz sentido querer conhecer a vontade popular à medida da execução das despesas públicas com total subversão da ordem.
O Decreto é instrumento regulamentador da lei, esta sim, manifestação da vontade popular por meios legitimados pela Constituição Federal.
O decreto como instrumento normativo autônomo só pode ser baixado nos termos do art. 84, VI, a da CF para “dispor sobre organização e funcionamento da administração pública federal, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou extinção de órgãos públicos”.
Basta examinar as atribuições dos conselhos de políticas públicas e das comissões de políticas públicas, conferência nacional, audiência pública, consulta pública, mesas de diálogo, fórum interconselhos etc. que estão previstos no art. 2º do Decreto para verificar que, além do dispêndio de despesas públicas, esses órgãos interferem em toda a administração pública direta e indireta da União, inclusive, nas agências reguladoras, usurpando a competência legislativa do Congresso Nacional. O Presidente da Câmara dos Deputados que inicialmente considerava constitucional o Decreto contra o entendimento consagrado pela Comissão Técnica mudou de opinião e colocou em votação o projeto de Decreto Legislativo para sustar os efeitos daquele decreto presidencial. Contudo, suspendeu a votação desse Decreto Legislativo tendo em vista as proximidades das eleições de outubro de 2014.
Tanto esse Decretão implica realização de despesas públicas que o parágrafo 4º, do art. 10 prevê a remuneração indireta dos dirigentes da sociedade civil, ao referir-se à celebração de parceria com a administração pública. Para isso, foi instituído pela Lei nº 13.019, de 31-7-2014 o regime de parceria voluntária envolvendo transferência de recursos públicos para as organizações da sociedade civil. Ao invés da instituição de fundos para custear a ação do Sistema Nacional de Participação Social anunciado pelo Secretário Geral da Presidência da República, logo após o advento do Decreto sob exame, preferiu-se a utilização do dócil Congresso Nacional para aprovar uma lei que permite financiar de forma indireta e sub-reptícia o funcionamento do Sistema que interfere em todos os escalões do Poder Executivo, abrangendo os órgãos da administração direta e indireta. Só que essa Lei nº 13.019, de 31-7-2014, aprovada a toque de caixa, dois meses após a data do Decretão, em seu art. 2º define a sociedade civil, aqui denominada “organização da sociedade civil” de forma diferente do que está no art. 1º do Decretão. Para efeitos legais a organização da sociedade civil seria “pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos que não distribui, entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados ou doadores, eventuais r4esultados, sobras, excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os aplica integralmente na consecução do respectivo objeto social, de forma imediata ou por meio da constituição de fundo patrimonial ou fundo de reserva”. Trata-se de uma definição que se aproxima das instituições imunes de tributos ou instituições isentas de impostos como as inúmeras ONGs, cujos dirigentes nada recebem legalmente a exemplo dos dirigentes da FIF que estão nadando em dinheiro.
Enfim, estabelecer conceitos vagos e imprecisos tem sido a velha técnica de lançar a semente da confusão.
Outrossim, apesar de falar em participação popular, tudo passa pela Mesa de Monitoramento do Secretário Geral da Presidência da República (art. 19) guindado à posição de um verdadeiro Primeiro Ministro, cargo incompatível com o regime presidencialista.
Ora, participação popular não se faz na forma de intervenção atabalhoada como está no Decreto, mas de forma ordenada e disciplinada no art. 14 da CF: plebiscito; referendo popular e iniciativa popular.
Pelo plebiscito, o governo promove consulta popular acerca de uma questão política ou institucional antes de sua formulação legislativa. No referendo popular acontece o inverso: submete-se o projeto legislativo aprovado pelo Congresso Nacional à vontade popular. Somente após a manifestação popular é que o projeto é sancionado pelo Presidente da República. Iniciativa popular diz respeito à deflagração do processo legislativo normalmente cabente ao Chefe do Poder Executivo e aos membros do Parlamento Nacional. Mas, mediante a assinatura de no mínimo um terço do eleitorado nacional, distribuído pelo menos em cinco Estados com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles é possível aos cidadãos apresentar o projeto de lei à Câmara dos Deputados. Uma das leis recentes que teve origem na iniciativa popular é aquela referente a ficha limpa. A outra, diz respeito a transparência tributária que obriga a inserção de valores aproximados de tributos incidentes na venda de mercadorias e serviços.
O serviço público, que já perdeu a eficiência por conta da mistura generalizada entre servidores efetivos (nos 5º e 6º escalões) e os servidores comissionados sacados do bolso do colete (nos 1º até 4º escalões), agora, com tantos estranhos dando palpites nas administrações direta e indireta da União, ainda que monitorados por um Super Ministro, certamente, sofrerá uma queda na sua qualidade que já está ruim, em face do inevitável aumento de confusão.
Esse Decreto é uma verdadeira bomba que irá detonar a Democracia brasileira. Fez o que nem a lei e nem a Emenda poderia fazer, por envolver reforma constitucional, remexendo as matérias protegidas por cláusulas pétreas: forma federativa, separação dos Poderes e direitos individuais.
A persistir a omissão do Congresso Nacional caberá à verdadeira cidadania pressionar os órgãos legitimados a ingressar com a ação direta de inconstitucionalidade – ADI – ou ação de descumprimento de preceito fundamental – ADPF – para evitar o caos na administração pública federal.
SP, 20-10-14.