Sergio Ricardo do Amaral Gurgel
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Na época em que eu cursava a faculdade de Direito, rotineira era a imagem de um punhado de alunos no corredor realizando debates sobre temas dos mais variados, frequentemente intercalados por sonoras gargalhadas. Logo me ocorria se o professor havia faltado, ou talvez dispensado a turma mais cedo por algum motivo relevante. Na maioria das vezes a suspeita se confirmava. Entretanto, certo dia, ao perguntar a um colega sobre o que havia ocorrido, ouvi a seguinte resposta: estamos aqui porque o professor não está dando aula, mas apenas discorrendo sobre princípios.
De fato, nas aulas jurídicas, nada mais previsível do que o professor optar por iniciar a matéria pela exposição de conceitos e princípios, considerando que todas as normas a serem estudadas estão direta ou indiretamente a eles vinculadas, servindo de pedra fundamental para a construção do conhecimento almejado. Não é por acaso que no estudo da disciplina mais importante da grade curricular do primeiro ano da faculdade, Introdução ao Estudo do Direito, os alunos aprendem, ou ao menos tentam aprender, algo sobre os Princípios Gerais do Direito, advindos do Direito Romano: honeste vivere (viver honestamente), alterum non laedere (não prejudicar ninguém) e suum cuique tribuere (dê a cada um o que lhe é devido). Aliás, diga-se de passagem, se os mencionados princípios fossem observados, dispensáveis seriam tantos outros.
De acordo com o renomado jurista Miguel Reale, princípios são “verdades ou juízos fundamentais que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos à dada porção da realidade.”[1]. E para o Ministro Celso de Melo, “violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou de inconstitucionalidade…”[2].
Por falar em Constituição, parece que o seu guardião não tem sido bem sucedido ao procurar proteger os princípios nela consagrados. A presunção da inocência, por exemplo, agoniza enquanto se sustenta a tese da execução provisória da sentença condenatória confirmada em segunda instância, mesmo quando não demonstrados os requisitos da custódia cautelar convergentes no periculum libertatis. E a maior prova de que os princípios têm muito pouca influência nas decisões judiciais pode ser constatada pelo exame da recente decisão emanada do Superior Tribunal de Justiça, que, mesmo corroborando a tese da Suprema Corte, nega tal providência quando se trata de penas restritivas de direitos. Isso quer dizer que enjaular o réu antes da confirmação da culpa pode, mas compeli-lo à prestação de serviços à comunidade, por exemplo, seria demasiadamente injusto.
É claro que o desrespeito aos princípios não poderia ficar circunscrito às atividades judiciais sem que isso afetasse a rotina palaciana, mas só ganham relevo, ao ponto de escandalizar a opinião pública, quando divulgadas pela imprensa. Se atualmente os detentores do poder não conseguem se aprumar em bases sólidas da clareza e coerência, tal sorte se deve às práticas oriundas de tempos remotos, caracterizados por um sistema educacional visivelmente degenerado.
Para efeito de ilustração, deve-se observar o teor da Lei 13.546/2017, que alterou o Código de Trânsito Brasileiro, principalmente no que diz respeito à embriaguez. Entre outras providências, o crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor, quando praticado por condutor embriagado, passou a cominar as penas de cinco a oito anos de reclusão. Aos olhos de um leigo, nada mais justo do que reprimir com maior rigor uma conduta tão execrável quanto essa, que há muito tempo vem ceifando vidas de inocentes nas vias públicas em todo o país. Porém, não se pode perder de vista que, entre tantos princípios orientadores em matéria penal, destaca-se sobremaneira o da Individualização da Pena, segundo o qual, no momento da cominação (assim como o da aplicação e execução) compete ao legislador verificar se a reprimenda condiz com o grau de lesão ao bem jurídico tutelado, a fim de se estabelecer perfeita simetria em relação aos demais delitos.
A previsão de uma pena que atinge oito anos de reclusão como resposta a uma conduta culposa está muito longe de se adequar a tais critérios. Se, por exemplo, um indivíduo produzir substância tóxica, perigosa ou nociva à saúde humana ou ao meio ambiente, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou nos seus regulamentos, poderá ser submetido à pena de 1 a 4 anos de reclusão. Sendo a substância radioativa ou nuclear, a pena pode ser aumentada de um sexto a um terço. E se causar a morte, será aplicada em dobro (art. 56, § 2.º c/c art. 58, III, da Lei 9.605/1998 (Lei Ambiental). Em suma, se o agente for condenado à pena mínima, esta não passará de 2 anos e 4 meses de reclusão. Esse malfeitor que não só gerou perigo a um número indeterminado de pessoas, mas também destruiu a vida alheia, utilizando-se de material radioativo que, em média, leva alguns milhares de anos para começar a reduzir os seus efeitos nocivos à saúde humana e ao meio ambiente, pegará menos da metade da pena mínima prevista para quem causar a morte na direção de veículo automotor em estado de embriaguez. Somente aqueles que se prostraram no corredor enquanto o professor lecionava a respeito dos princípios podem achar razoável e proporcional o tratamento da lei dado a ambos os delitos após uma interpretação sistemática.
Não podíamos esperar muita coisa de um legislador que não respeita o que há de mais elementar no que tange ao Direito Penal, revelado pelo Princípio da Subsidiariedade, segundo o qual só merecerão resposta penal as lesões mais graves aos bens de suma importância para a vida em sociedade. Atualmente, quem examinar o Código Penal e a legislação extravagante pertinente, ainda que superficialmente, notará que muito pouco ficou à margem do alcança da tipicidade. Os fatos que ainda se restringem ao campo da ilicitude civil ou administrativa estão fazendo fila no Congresso Nacional para serem convertidas em infração penal. E assim, há muitos anos a legislação pátria vem transformando o povo brasileiro em um aglomerado de delinquentes. Não há como negar que dos mais de duzentos milhões, poucos são os que cometeram crimes reconhecidos e apurados pela Justiça. Porém, é desafiador encontrar alguém capaz de jurar nunca ter violado alguma norma penal, compreendendo tanto os crimes quanto as contravenções. Se comerciante, já expôs à venda algum produto em condições impróprias para o consumo? Se contribuinte, já omitiu alguma informação relevante ao fisco? Se condutor de veículo automotor, já perdeu a compostura xingando o autor de uma barbeiragem? Se funcionário público, já deixou de praticar algum ato de ofício cedendo a pedido de outrem? Se possuidor de vínculo empregatício, já apresentou atestado médico falso para o abono de faltas? Se estudante, já assinou a folha de chamada em nome de um colega? Se obsessivo por limpeza, já produziu bastante fumaça ao queimar lixo no quintal? Se apreciador das festividades juninas, lançou ao vento um pequeno balão chinês ou entregou para criança ou adolescente fogos de artifício além dos tradicionais “estalinhos” e “estrelinhas”? Se possuidor de uma libido exacerbada, em contrapartida de uma educação sepultada, já chamou uma mulher de formas voluptuosas de “gostosa”? Claro que não é necessário responder, mesmo porque, de acordo com o Pacto de São José da Costa Rica do qual o Brasil é signatário, ninguém é obrigado a depor contra si mesmo. Todavia, engana-se quem se sente imune ao submundo da ilicitude penal pelo simples fato de poder exibir a folha de antecedentes criminais sem qualquer anotação. Não estamos aqui tratando de réus ou condenados em processos criminais, mas sim de simples transgressores, delinquentes, malfeitores, segundo o ordenamento jurídico vigente. Este é apenas um exemplo dos prejuízos que atingem a sociedade quando não há respeito aos princípios.
Outras áreas da ciência jurídica também agonizam frente ao ignóbil desprezo às bases doutrinárias. No âmbito do Direito Administrativo, por exemplo, o Princípio da Moralidade parece que só tem sido levado a sério pelas bancas examinadoras que elaboram as provas de concurso público. E quanto ao Princípio da Transparência, um dos pilares do Direito Tributário, difícil saber se já foi visto em algum lugar diferente do texto constitucional.
A arte de navegar em mar aberto sem bússola ou quadrante, movido apenas por ventos e tempestades, tornou-se o life style do homem moderno, que, apesar de não ter constituído o seu caráter em princípios éticos, não consegue esconder uma necessidade vital de ser aceito pelo grupo, independentemente de sua natureza. E assim chega a acreditar, ou ao menos finge, ter aderido aos princípios daqueles que o acolheram, sem, contudo, reconhecê-los ainda que intrinsicamente. Por essa razão não é de se espantar a falência das sociedades conjugais, nas quais os únicos princípios que ainda subsistem são os da “vantagem financeira até que a insolvência os separe”, que não admiti nenhum tipo de mitigação, acompanhado de um dos mais aplicados na atualidade: “quando a saúde for embora, eu irei também”. No campo dogmático, a ignorância e a distorção dos princípios fundamentais estão tornando muitos religiosos inveterados em verdadeiros expoentes da hipocrisia. O apego aos bens materiais e a divisão da sociedade por razões políticas, ou relacionadas à sexualidade, ou até mesmo em razão da formação religiosa, por mais incrível que pareça, são simples exemplos de como a espiritualidade esvaiu-se juntamente com os princípios que nos orientam ao amor ao próximo e à obediência a um Deus misericordioso e justo.
Os operadores do Direito podem e devem lutar pela preservação da forma de pensar baseada em princípios capazes de sustentar todo o sistema jurídico voltado primordialmente para o bem estar do indivíduo. O caminhar em sentido oposto seria retroceder no processo civilizatório, abrindo espaço a todo tipo de misticismo que nos remeterá de volta à escuridão. Todo método baseado na razão precisa constantemente se socorrer aos princípios para que seja possível o reencontro dos mesmos trilhos vistos no ponto de partida.
[1] REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1986. p 60.
[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo. 12ª ed. – São Paulo : Malheiros, 2000, p. 747/748.