A INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 112, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2021 Dispõe sobre procedimentos para anuência do uso de áreas em projetos de assentamento do Incra, por atividades ou empreendimentos minerários, de energia e de infraestrutura. (Nota do editor)

 

André Ricardo Lima Ferreira[1]

Guilherme Simões Ferreira[2]

 

  1. INTRODUÇÃO

Em 22 de dezembro de 2021, foi publicada no Diário Oficial da União a Instrução Normativa (“IN”) nº 112[3], do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que dispõe sobre os procedimentos para anuência quanto ao uso de áreas em projetos de assentamento do Incra, para o desenvolvimento de atividades e/ou empreendimentos minerários, de energia e de infraestrutura. A IN entrou em vigor  em 3 de janeiro de 2022.

Trata-se de uma iniciativa regulatória pioneira implementada pela Administração Pública Federal, que trouxe regras específicas para a liberação de áreas em assentamentos para projetos de mineração, de energia e de infraestrutura. Importante salientar que, até então, inexistiam procedimentos administrativos estabelecidos a serem adotados visando à anuência do uso de áreas em projetos de assentamento do Incra para atividades e/ou empreendimentos citados acima, nos casos de interferência de grandes projetos de infraestrutura, energéticos ou exploração mineral nessas áreas.

Essa falta de regulamentação sempre foi motivo de várias discussões sobre a viabilidade destes empreendimentos nas áreas de assentamento, principalmente no que diz respeito aos conflitos envolvendo atividades de mineração, diante da rigidez locacional[4] das jazidas minerais e a consequente falta de alternativa locacional para instalação dos empreendimentos minerários.

É indiscutível o fato da essencialidade da atividade de mineração para a sociedade, uma vez que destinada a pesquisar, descobrir e transformar os recursos minerais em benefícios econômicos e sociais. Diante  dessas características únicas, que a diferenciam das demais atividades produtivas, ela necessita de regras específicas, predominância sobre outros empreendimentos, e de instrumentos próprios para garantir suas operações, em face dos altos investimentos envolvidos e da incerteza de que, ao final de um processo de pesquisa, serão encontradas reservas minerais com viabilidade técnica, ambiental e econômica.

Contudo, sabemos que nem sempre a atividade incidirá sobre propriedade imobiliária própria do empreendedor ou propriedade de terceiro isenta de restrições/onerações. Logo, áreas com aptidões minerárias, de reservação de água (para geração de energia elétrica) ou até para construção de importantes rodovias/ferrovias, podem se encontrar previamente destinadas a implementação de um assentamento latifundiário para Reforma Agrária.

Cabe salientar que, a Resolução  Conama n. 458/2013[5] (que estabelece procedimentos para o licenciamento ambiental em assentamento de reforma agrária), conceitua no seu  art. 2º, inciso I, que:

Art. 2° Para efeito desta Resolução, são adotadas as seguintes definições:

I – Assentamentos de reforma agrária: conjunto de atividades e empreendimentos planejados e desenvolvidos em área destinada à reforma agrária, resultado do reordenamento da estrutura fundiária, de modo a promover a justiça social e o cumprimento da função social da propriedade; (grifo nosso)

Logo, podemos assegurar que a área de assentamento somente passa a existir legalmente quando o Incra, após os devidos trâmites legais, transfere a terra aos trabalhadores rurais, a fim de que a cultivem e promovam seu desenvolvimento econômico e social.

Outrossim, notoriamente as atividades envolvendo mineração, empreendimentos de energia (geração, distribuição e transmissão) e de infraestrutura (principalmente para logística), como consequência e necessidade, via de regra, demandam a ocupação ou interferência de grandes áreas e ocasionalmente enfrentarão conflitos com as áreas destinadas à implantação de assentamentos rurais, conforme podemos perceber na figura[6] abaixo:

Resolução ANM n. 122/2022 - Em 22 de dezembro de 2021, foi publicada no Diário Oficial da União a Instrução Normativa (“IN”) nº 112 , do Instituto Nacional de Colonização e Reforma...

Para exemplificar esses casos de conflitos, identificamos a existência de inúmeros requerimentos e títulos minerários que acabam coincidindo com áreas de assentamento. Esse fato é recorrente nos Estados do Pará, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e na área da Amazônia Legal, conforme evidenciam as figuras[7] abaixo:

Resolução ANM n. 122/2022 - Em 22 de dezembro de 2021, foi publicada no Diário Oficial da União a Instrução Normativa (“IN”) nº 112 , do Instituto Nacional de Colonização e Reforma... Resolução ANM n. 122/2022 - Em 22 de dezembro de 2021, foi publicada no Diário Oficial da União a Instrução Normativa (“IN”) nº 112 , do Instituto Nacional de Colonização e Reforma...

  1. OBJETIVO DA INSTRUÇÃO NORMATIVA

O objetivo da Instrução Normativa está expresso no seu  art. 1º, qual seja:

Art. 1º Esta Instrução Normativa tem por objetivo regulamentar, em âmbito nacional, os procedimentos administrativos para a anuência do uso de áreas em projetos de assentamento do Incra por atividades ou empreendimentos minerários, de energia e de infraestrutura, que influenciam, direta ou indiretamente, o desenvolvimento das atividades típicas do Programa Nacional de Reforma Agrária – PNRA.

Portanto, a IN Incra  n. 112/2021 seria aplicável às atividades e/ou empreendimentos que já se encontram em andamento em áreas destinadas aos projetos de assentamentos e que não solicitaram a anuência regulamentada pela norma. Frisa-se ainda que a nova IN também se aplica aos requerimentos de anuência já em trâmite perante o Incra.

Assim sendo, a não aplicação da IN Incra nº 112/2021, também se encontra expressamente definida nos parágrafos 1º e 2º do mesmo  art. 1º da Instrução Normativa, conforme copiamos abaixo:

  • 1º As disposições desta Instrução Normativa não se aplicam aos casos de empreendimentos ou atividades voltadas à execução do PNRA.
  • 2º As disposições desta Instrução Normativa não serão aplicadas se observadas, concomitantemente, a impossibilidade de coexistência do empreendimento ou atividade com o projeto de assentamento e a inexistência de alternativa locacional para o empreendimento pretendido.

Parece-nos que a redação do parágrafo 2º do  art. 1º da IN objeto deste breve estudo pode de alguma forma causar confusão a um eventual leitor desavisado, na medida em que daria a impressão de que uma instrução normativa poderia estabelecer, de alguma forma, por si só, a impossibilidade de implantação do empreendimento minerário, de energia ou de infraestrutura, caso inexista compatibilidade entre estes e o projeto de assentamento rural.

Ora, evidente que uma norma infralegal não poderá se sobrepor à disposição constitucional e à lei ordinária, as quais, no tocante à atividade de mineração, deixam mais do que claro o seu interesse nacional (CF, art. 176) e a utilidade pública (Lei 12.651/2012; Decreto-Lei 3.365/1941).

Certamente uma instrução normativa não poderá determinar a impossibilidade de implantação de tais empreendimentos, que sequer estão sob gestão e fiscalização do Incra.

 

  1. LEGITIMIDADE DO INCRA PARA EDIÇÃO DA INSTRUÇÃO NORMATIVA

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é uma autarquia federal da Administração Pública brasileira, cuja missão prioritária é executar a reforma agrária e realizar o ordenamento fundiário nacional.[8]

 O Incra foi criado pelo Decreto-lei nº 1.110, de 9 de julho de 1970[9]. O Incra está implantado em todo o território nacional, por meio de 29 superintendências regionais e 49 unidades avançadas.

 Vale ressaltar ainda que compete ao Incra manter o cadastro nacional de imóveis rurais e administrar as terras públicas da União. O objetivo é implantar modelos compatíveis com as potencialidades e biomas de cada região do país e fomentar a integração espacial dos projetos.

Outra tarefa importante no trabalho da autarquia é o equacionamento do passivo ambiental existente, a recuperação da infraestrutura e o desenvolvimento sustentável dos mais de  8 mil assentamentos existentes no país.

Conforme consta no site da autarquia, a Instrução Normativa é o ato expedido pelo presidente do Incra para disciplinar a aplicação de procedimentos de caráter geral previstos em leis, decretos e regulamentos, ou para estabelecer diretrizes e dispor sobre matéria de sua competência específica[10].

A instrução deve ser analisada e aprovada pelo Conselho de Diretor do Incra, que submete o ato para assinatura do presidente do instituto e posterior publicação no Diário Oficial da União.

Em relação à IN Incra nº 112/2021, não nos restam dúvidas da legitimidade e da legalidade da autarquia em criar procedimentos para anuência quanto ao uso de áreas em projetos de assentamento do Incra, para o desenvolvimento de atividades e/ou empreendimentos minerários, de energia e de infraestrutura, visto que, por imposição legal do Decreto n. 91.766/1985[11], é o Incra o único responsável pela execução direta do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que será implantado em Áreas Regionais Prioritárias, mediante Planos Regionais de Reforma Agrária e respectivos Projetos de execução, nos termos do que estabelecem os arts. 35 e 36 do Estatuto da Terra[12], conforme previsto no art. 2º do Decreto n. 91.766/1985.

Todavia, importante novamente ressaltar que o Incra não possui competência para vedar atividades de mineração, de energia ou de infraestrutura em áreas de assentamento rural. Se restar verificada a incompatibilidade entre as atividades, entendemos que outros procedimentos poderão ser adotados para solução do impasse, no caso específico da atividade de mineração, a adoção das disposições contidas nos  arts. 27, 59 e 60 do Código de Mineração, com a instituição da servidão minerária para pesquisa ou lavra, inclusive mediante a judicialização do tema.

 

  1. REQUISITOS E PROCEDIMENTOS

A IN estabelece que os requerimentos de anuência devem ser protocolizados na unidade regional do Incra responsável pelo projeto de assentamento, acompanhado dos documentos descritos no art. 4º da IN Incra n. 112/2021.

A IN determina ainda que, nos casos de concessão para área maiores de 2.500 hectares, dependerá de prévia aprovação do Congresso Nacional, conforme preconiza o parágrafo 7º do art. 4º da instrução.

Nesse caso,  parece estranho que uma instrução normativa estabeleça a atuação do Congresso Nacional para aprovação prévia. Usualmente, observamos que a atuação do Congresso Nacional é sempre regulamentada  pela própria Constituição Federal ou por lei ordinária devidamente aprovada pelo Poder Legislativo e sancionada pelo Poder Executivo. Para exemplificar caso semelhante, vale lembrar que é lei, mais precisamente a de número 8.629/1993, que estabelece, em seu art. 23, §2º, a competência do Congresso Nacional para autorizar aquisição ou arrendamento de imóvel rural, superior a 100 módulos fiscais, por pessoa jurídica estrangeira.

A nosso ver, uma mera instrução normativa criada por órgão do Poder Executivo sem qualquer aval ou ciência do Poder Legislativo, que estabeleça competência de atuação do Congresso Nacional, estaria ferindo o princípio da separação dos poderes.

Uma vez protocolizado o requerimento, o Superintendente Regional deverá indicar um servidor ou grupo de trabalho responsável pela condução dos procedimentos técnicos, em até 10 (dez) dias úteis,  por meio de ordem de serviço que deverá conter prazo para conclusão dos trabalhos não superior a 90 (noventa) dias, com possibilidade de prorrogação por igual período, mediante justificativa (art. 12 da IN).

 

  1. INSTRUMENTOS CONTRATUAIS E CONDICIONANTES AO USO DA ÁREA

De acordo com art. 23 da IN, a anuência do uso da área do projeto de assentamento poderá ser formalizada por meio dos seguintes instrumentos: (i) escritura pública de servidão ou; (ii) contrato de concessão de uso oneroso.

Em relação a servidão, importante ressaltar que ela deverá ser precedida de Decreto de Utilidade Pública (DUP), conforme dispõe o inciso I do art. 23 da IN. Aqui, importante  frisar que, para os empreendimentos minerários, existe o instituto da Servidão Minerária prevista no art. 59 do Código de Mineração[13] (Decreto-lei n. 227/1967), que não decorre de emissão prévia de DUP.

Assim sendo, entendemos que, nestes nesses casos, há margem para discussões jurídicas, em casos de empreendimentos minerários conflitantes com áreas de assentamento, que, em tese, poderão ter que solicitar a DUP à ANM, nos termos do art. 2º, XXI da Lei Federal n. 13.575/2017[14].

Conforme disposto acima, há também a previsão legal da celebração do instrumento de concessão de uso da área, que deverá ser precedida de esclarecimentos gerais aos assentados sobre o empreendimento ou atividade (art. 16 da IN).

As condicionantes para uso da área referentes às obrigações a serem assumidas pelos danos e prejuízos causados ao PNRA e aos assentados poderão ser, conforme o caso, entre outras (art. 29 da IN):

  1. reassentamento ou realocação das famílias afetadas;
  2. implantação, melhoria ou manutenção de infraestrutura em favor do projeto de assentamento;
  • pagamento de justa e prévia indenização dos danos e das benfeitorias aos assentados, decorrentes da exploração do seu lote;
  1. indenização ao Incra por danos e benfeitorias reprodutivas ou não reprodutivas, ou outras acessões de valor econômico existentes na área;
  2. indenização de lucros cessantes aos assentados, quando cabível, referentes às atividades produtivas em desenvolvimento e impactadas pelo empreendimento ou atividade, decorrentes da exploração do seu lote;
  3. implantação, melhoria ou manutenção de infraestrutura para serviços públicos impactados, com participação dos órgãos envolvidos;
  • melhoria da atividade produtiva dos assentados;
  • apoio à comercialização da produção dos assentados;
  1. viabilização de assistência técnica aos assentados;
  2. georreferenciamento para certificação do perímetro e parcelas do projeto de assentamento;
  3. construção de infraestrutura ou disponibilização de equipamentos que contribuam para o desenvolvimento sustentável dos projetos de assentamento;
  • apoio na regularização ambiental da área do projeto de assentamento e do seu entorno;
  • fornecimento ao Incra dos meios operacionais necessários para o monitoramento e fiscalização de todas as etapas do processo de execução das medidas contidas no instrumento de anuência.

As condicionantes/obrigações descritas acima que deverão ser executadas e implementadas pelo empreendedor  têm função primordial de compatibilizar o empreendimento a ser instalado com o projeto de assentamento presente na área requerida.

Essas medidas, providências e ações deverão levar em consideração os impactos que a atividade causará ao meio ambiente  e meio social, produtivo e econômico dos assentados, inclusive na área indiretamente afetada.

Destarte, concluída a instrução processual, o servidor ou grupo de trabalho irá elaborar parecer técnico conclusivo recomendando o deferimento e/ou indeferimento da anuência do uso da área do projeto de assentamento, devendo tal recomendação ser confirmada pelo Superintendência Regional do Incra.

Por fim, caberá ao Presidente do Incra, autorizado pelo Conselho Diretor deliberar sobre os pedidos de anuência, bem como representar a autarquia na assinatura da Escritura Pública de Servidão ou no Contrato de Concessão de Uso Oneroso.

Vale observar que, no caso das atividades de mineração,  elas ocorrem em fases distintas, conforme estabelecido pelo Código de Mineração, a saber, pesquisa e lavra. A pesquisa mineral, atividade de prazo determinado, ocorrerá mediante outorga de alvará com prazo de até 3 anos, podendo ser renovado uma única vez.

Portanto, acreditamos que  esse rito de anuência estabelecido pela IN 112, diante do exíguo prazo concedido para realização dos trabalhos de pesquisa, poderá causar transtornos e sério atraso à atividade de pesquisa mineral.  Seria muito interessante a revisão da IN nesse sentido, estabelecendo, para casos de pesquisa mineral, um rito mais célere e menos burocrático.

 

  1. INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO

A anuência de uso da área do projeto de assentamento poderá ser concedida independentemente de licitação, nos exatos temos do parágrafo 1º do  art. 4º da IN, que dispensa a licitação para a emissão da anuência, caso o requerente demonstre que o ato de outorga, que legitima a sua atividade, lhe foi outorgado com exclusividade para operação naquele local específico.

Para os empreendimentos minerários, a referida possibilidade é extremamente relevante e expressamente aplicável, ante a natureza jurídica da atividade e a exclusividade assinalada ao empreendedor no que diz respeito às atividades minerais outorgadas nos direitos minerários de pesquisa e lavra nas áreas concedidas pela Agência Nacional de Mineração.

 

  1. CONFLITOS ENTRE EMPREENDIMENTOS DE INTERESSE SOCIAL E UTILIDADE PÚBLICA

Preliminarmente, antes de adentramos a discussão sobre o conflito entre empreendimento de interesse social e utilidade pública e tentarmos chegar  a uma conclusão sobre eventual prevalência de uma atividade sobre outra, convém verificarmos  a Lei Federal n. 8.629/1993, que dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III, Título VII, da Constituição Federal.

A Lei Federal n. 8.629/1993, em seu  art. 10, estabelece de forma clara as áreas que NÃO poderão ser aproveitáveis para Reforma Agrária, ou seja, para implantação de assentamentos rurais, destacando-se entre elas, as áreas sob efetiva exploração mineral, conforme transcrevemos abaixo:

Art. 10. Para efeito do que dispõe esta lei, consideram-se não aproveitáveis:

I – as áreas ocupadas por construções e instalações, excetuadas aquelas destinadas a fins produtivos, como estufas, viveiros, sementeiros, tanques de reprodução e criação de peixes e outros semelhantes;

II – as áreas comprovadamente imprestáveis para qualquer tipo de exploração agrícola, pecuária, florestal ou extrativa vegetal;

III – as áreas sob efetiva exploração mineral;

IV – as áreas de efetiva preservação permanente e demais áreas protegidas por legislação relativa à conservação dos recursos naturais e à preservação do meio ambiente.

V – as áreas com remanescentes de vegetação nativa efetivamente conservada não protegidas pela legislação ambiental e não submetidas a exploração nos termos do inciso IV do § 3º do art. 6º desta Lei.

Nota-se que o legislador infraconstitucional, ao instituir o dispositivo acima, deixou muito clara a prevalência da atividade de mineração (utilidade pública) em face da implantação de áreas de assentamentos (interesse social).

Superada a questão da previsão legal sobre a prevalência das atividades de utilidade pública, passamos à análise das possibilidades reais de conflitos que podem ocorrer.

Conforme demonstramos nas figuras apresentadas no item 1 deste artigo, existem inúmeras possibilidades de conflitos entre empreendimentos de interesse social com empreendimentos de utilidade pública (como por exemplo a mineração), posto que, conforme evidenciaram os mapas existem muitos assentamentos localizados em região com alto potencial geológico.

Assim sendo, a primeira pergunta que vem à tona é: Como ficam os interesses envolvendo essas atividades pois, mesmo existindo moradores e atividade rural nestas áreas, uma mineradora pode pretender pesquisar e posteriormente lavrar minérios nestas áreas? De quem seria a prioridade para o uso da área?

Como vimos no item 2 deste artigo, a IN determina no parágrafo 2º do  art. 1º, que caso o Incra identifique a impossibilidade de coexistência entre o projeto do requerente com o projeto de assentamento, a anuência não poderá ser objeto de requerimento nos termos da IN.

Por outro lado, também vimos, no item 1 deste artigo, que a atividade de mineração tem a sua importância econômica e o devido reconhecimento de ser uma atividade com caráter de utilidade pública, conforme preconiza expressamente a legislação, como  no art. 5º, alínea “f’ do Decreto-lei n. 3.365/1941[15] (dispõe sobre desapropriações por utilidade pública) e no  art. 5º, II do Decreto Federal n. 9.406/2018[16] (Regulamenta o Código de Mineração).

Diante do exposto  e da fundamentação legal de regência, não  restam dúvidas de que, no caso da mineração, esta deverá prevalecer em relação ao interesse social, para fins de uso e ocupação do solo, considerando a rigidez locacional da atividade.

Outrossim, caberá ao Estado, por ser titular de tais recursos, a tutela de legislar sobre questões de obrigações e deveres do minerador e direitos e compensações aos assentados, bem como sobre eventual realocação das áreas do assentamento.

A regulamentação a ser implementada pelo Estado deverá tratar desde a realização de um acordo com os assentados a, até mesmo, a fiscalização para que haja eficiência e sustentabilidade na extração e na utilização da área, nos casos de compatibilidade entre as áreas de assentamento e as atividades de mineração, por exemplo.

Assim, haverá potencial para atenuar e/ou mitigar os impactos sociais e ambientais gerados  pela atividade, evitando-se conflitos e  esgotamento do meio ambiente para as presentes e futuras gerações.

Importante reforçar o entendimento de que, independentemente de quem for  o proprietário da área, em existindo  nela recursos minerais a serem lavrados, estes não pertencerão aos superficiários (assentados), pois seu único proprietário e possuidor é a União.

A discussão exposta  tem grande relevância na compreensão sobre de quem é a prevalência do uso e da ocupação do solo no Brasil, principalmente quando se tem aparente conflito entre atividade de interesse social e de utilidade pública, ambas relevantes para o desenvolvimento social e econômico do país.

Contudo, no caso da mineração, há que se ponderar pela prevalência diante dos motivos expostos anteriormente, bem como em virtude de ser uma das principais fontes na geração de empregos diretos e indiretos no país, oferecendo  matéria-prima para variados tipos de indústria.

 

  1. CONCLUSÃO

Após a exaustiva análise da nova instrução normativa do Incra, entendemos que, independentemente dos debates que virão acerca das disposições da IN Incra nº 112/2021, a norma é, sem dúvidas, um grande avanço do Poder Público na regulamentação do uso de imóveis destinados a assentamentos  conflitantes com outros empreendimentos também dotados de utilidade pública e interesse nacional.

Todavia, a implantação de projetos de alta complexidade, sobretudo aqueles dotados de rigidez locacional, ainda deverão enfrentar longos e aprofundados debates, diante das lacunas existentes na Instrução Normativa e das amplas possibilidades de discussão sobre quais atividades devem ou não prevalecer quando inseridas em áreas de assentamentos.

No mais, constatamos ainda que, infelizmente, a norma é genérica, subjetiva e não  especifica os parâmetros técnicos e legais a serem averiguados nos casos de incompatibilidade, não prevendo, também, qual será o encaminhamento dos requerimentos (como no caso de pesquisa mineral) nos quais restar evidenciada a incompatibilidade do empreendimento com a finalidade do assentamento, o que  acarretará inúmeras discussões,  no âmbito administrativo ou até no judicial.

Mas isso não é só! Se considerarmos  que a IN, além das condicionantes do art. 29, determina  que o empreendedor  deve arcar com outros encargos financeiros como (i) contraprestação pelo uso da área pública, devido ao Incra, cujo valor será calculado pela autarquia e; (ii) pagamento de indenizações pelos danos e prejuízos causados ao Plano Nacional da Reforma Agrária – PNRA e aos assentados (individual ou coletivamente considerados, destinados diretamente a eles, como titulares do direito possessório),  verificar-se-á que tais medidas podem inviabilizar alguns empreendimentos, senão vejamos mais adiante.

Sabe-se que os empreendimentos minerários, em decorrência da legislação que regula suas atividades, bem como em virtude de, na maioria das vezes, ocupar áreas de terceiros, são obrigados, em função do que dispõe o art. 27 do Código de Mineração, a arcar com o pagamento de rendas e danos aos superficiários, e com o pagamento da Participação do Proprietário nos Resultados da Lavra – PPRL, caso haja também a lavra de minério na área ocupada.  Ocorre que, caso  essa ocupação fosse em imóvel público, a renda e a PPRL não seriam devidas pelo empreendedor ou pela empresa de mineração.

Entretanto, vejamos o que dispõe o art. 30 da IN Incra n. 112/2021:

Art. 30. A participação nos resultados ou renda provenientes do empreendimento ou da atividade serão pagas ao Incra na forma determinada em lei ou na forma convencionada, conforme o caso.

Nota-se o absurdo  que é uma Instrução Normativa do Incra  criar encargos financeiros para empreendimentos minerários, o que não tem respaldo legal, seja no Código de Mineração, seja na Constituição Federal. Esse é  um aspecto que, certamente,  será objeto de futura discussão judicial sobre a aplicação de dispositivos da IN Incra nº 112/2021, que deverão ser enfrentados pelo Poder Judiciário.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CONAMA. Resolução n. 458, de 16 de julho de 2016. Dispõe procedimentos para o licenciamento ambiental em assentamento de reforma agrária. Diário Oficial da União, Brasília, 18 jul. 2016. Disponível em https: <https://www.ibama.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&force=1&legislacao=130335> Acesso em: 31 jul. 2022.

INCRA. Instrução Normativa n. 112, de 22 de dezembro de 2021. Dispõe sobre procedimentos para anuência do uso de áreas em projetos de assentamento do Incra, por atividades ou empreendimentos minerários, de energia e de infraestrutura. Diário Oficial da União, Brasília, 23 dez. 2021. Disponível em https: <www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-112-de-22-de-dezembro-de-2021-369777898> Acesso em: 31 jul. 2022.

INFOAMAZONIA.<https://infoamazonia.org/2022/01/07/Incra-autoriza-venda-de-assentamentos-para-mineracao-energia-e-infraestrutura-sem-consulta-publica/> Acesso em: 31 jul. 2022.

JAZIDA.COM.<https://blog.jazida.com/relacao-entre-projetos-minerarios-e-areas-de-assentamento/> Acesso em: 31 jul. 2022.

DECRETO-LEI N. 3.365, de 21 de junho de 1941. Dispõe sobre desapropriações por utilidade pública. Diário Oficial da União, Brasília, 18 jul. 1941. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3365.htm>Acesso em: 7 ago. 2022.

DECRETO-LEI N. 227, de 28 de fevereiro de 1967. Dá nova redação ao Decreto-lei nº 1.985, de 29 de janeiro de 1940. (Código de Minas). Diário Oficial da União, Brasília, 28 fev. 1967. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0227.htm>Acesso em: 6 ago. 2022.

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Cria o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Diário Oficial da União, Brasília, 10 jul. 1970. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/del1110.htm#:~:text=DECRETO%2DLEI%20N%C2%BA%201.110%2C%20DE%209%20DE%20JULHO%20DE%201970.&text=Cria%20o%20Instituto%20Nacional%20de,Agr%C3%A1ria%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias>Acesso em: 1 ago. 2022.

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LEI FEDERAL N. 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 30 nov. 1964. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm>Acesso em: 1 ago. 2022

LEI FEDERAL N. 13.575, de 26 de dezembro de 2017. Cria a Agência Nacional de Mineração (ANM); extingue o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Diário Oficial da União, Brasília, 27 dez. 2017. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13575.htm>Acesso em: 6 ago. 2022.

 

[1] Advogado, atuando há 14 anos no setor mineral, pós-graduado em Direito da Mineração pelo Centro de Estudos de Direito e Negócios – CEDIN, pós-graduado em Direito Ambiental pelo Complexo Jurídico Damásio de Jesus e pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Santa Cecília. Presidente da Comissão Meio Ambiente da Subseção da OAB de Cubatão. Membro da UBAA – Associação Brasileira dos Advogados Ambientais. Membro da ABIDEM – Associação Brasileira de Direito de Energia e Meio Ambiente.

[2] Advogado, atuando há 20 anos no setor mineral. MBA em Gestão Empresarial pela FGV. Coordenador da Comissão Jurídica e Conselheiro do Instituto Brasileiro de Mineração – IBRAM. Diretor da Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa Mineral – ABPM. MBA em Relações Governamentais pela FGV. Membro da Comissão de Direito Minerário e de Base Mineral do Conselho Federal da OAB.

[3] INCRA. Instrução Normativa n. 112, de 22 de dezembro de 2021. Dispõe sobre procedimentos para anuência do uso de áreas em projetos de assentamento do Incra, por atividades ou empreendimentos minerários, de energia e de infraestrutura. Diário Oficial da União, Brasília, 23 dez. 2021. Disponível em https: <www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-112-de-22-de-dezembro-de-2021-369777898> Acesso em: 31 jul. 2022.

[4] Rigidez locacional significa que o empreendedor não pode escolher livremente o local onde exercer a sua atividade produtiva, porque as minas devem ser lavradas onde a natureza colocou o bem mineral.

[5]  Conama. Resolução n. 458, de 16 de julho de 2016. Dispõe procedimentos para o licenciamento ambiental em assentamento de reforma agrária. Diário Oficial da União, Brasília, 18 jul. 2016. Disponível em https: <https://www.ibama.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&force=1&legislacao=130335> Acesso em: 31 jul. 2022.

[6]JAZIDA.COM<https://blog.jazida.com/relacao-entre-projetos-minerarios-e-areas-de-assentamento/> Acesso em: 31 jul. 2022.

 

[7] https://infoamazonia.org/2022/01/07/Incra-autoriza-venda-de-assentamentos-para-mineracao-energia-e-infraestrutura-sem-consulta-publica/. Acesso em: 31 jul. 2022.

 

[8] https://www.gov.br/Incra/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/o-Incra. Acesso em 01/08/2022.

[9]Decreto-Lei n. 1.110, de 09 de julho de 1970.
Cria o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Diário Oficial da União, Brasília, 10 jul. 1970. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/del1110.htm#:~:text=DECRETO%2DLEI%20N%C2%BA%201.110%2C%20DE%209%20DE%20JULHO%20DE%201970.&text=Cria%20o%20Instituto%20Nacional%20de,Agr%C3%A1ria%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias>Acesso em: 1 ago. 2022

[10] https://www.gov.br/Incra/pt-br/centrais-de-conteudos/legislacao/instrucao-normativa. Acesso em: 1 ago. 2022.

[11]Decreto n. 91.766, de 10 de outubro de 1985. Aprova o Plano Nacional de Reforma Agrária – PNRA e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 10 jul. 1970. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Atos/decretos/1985/D91766.html>Acesso em: 1 ago. 2022

[12]Lei n. 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 30 nov. 1964. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm>Acesso em: 1 ago. 2022

[13] Decreto-lei n. 227, de 28 de fevereiro de 1967. Dá nova redação ao Decreto-lei nº 1.985, de 29 de janeiro de 1940. (Código de Minas). Diário Oficial da União, Brasília, 28 fev. 1967. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0227.htm>Acesso em: 6 ago. 2022

[14]Lei n. 13.575, de 26 de dezembro de 2017. Cria a Agência Nacional de Mineração (ANM); extingue o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Diário Oficial da União, Brasília, 27 dez. 2017. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13575.htm>Acesso em: 6 ago. 2022

[15] Decreto-lei n. 3.365, de 21 de junho de 1941. Dispõe sobre desapropriações por utilidade pública. Diário Oficial da União, Brasília, 18 jul. 1941. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3365.htm>Acesso em: 7 ago. 2022

[16] Decreto n. 9.406, de 12 de junho de 2018. Regulamenta o Decreto-Lei nº 227, de 28 de fevereiro de 1967, a Lei nº 6.567, de 24 de setembro de 1978, a Lei nº 7.805, de 18 de julho de 1989 e a Lei nº 13.575, de 26 de dezembro de 2017. Diário Oficial da União, Brasília, 13 jun. 2018. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9406.htm>Acesso em: 7 ago. 2022

 

Autores

 

André Ricardo Lima Ferreira

Advogado, atuando há 14 anos no setor mineral, pós-graduado em Direito da Mineração pelo Centro de Estudos de Direito e Negócios – CEDIN, pós-graduado em Direito Ambiental pelo Complexo Jurídico Damásio de Jesus e pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Santa Cecília. Presidente da Comissão Meio Ambiente da Subseção da OAB de Cubatão. Membro da UBAA – Associação Brasileira dos Advogados Ambientais. Membro da ABIDEM – Associação Brasileira de Direito de Energia e Meio Ambiente.

 

Guilherme Simões Ferreira

Advogado, atuando há 20 anos no setor mineral. MBA em Gestão Empresarial pela FGV. Coordenador da Comissão Jurídica e Conselheiro do Instituto Brasileiro de Mineração – IBRAM. Diretor da Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa Mineral – ABPM. MBA em Relações Governamentais pela FGV. Membro da Comissão de Direito Minerário e de Base Mineral do Conselho Federal da OAB.

 

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