Como vimos, concluímos que não é preciso viajarmos para meados de 442 AC para compreendermos que as pessoas tem direito de velar e enterrar seus entes queridos.
“ Comum no sangue, querida irmã, caríssima Ismene, sabes de algum mal, dos que nos vêm de Édipo, que Zeus não queira consumar em nossas vidas? Nada – angústia, infortúnio, humilhação, desonra –, não há mal que eu não veja cair sobre ti, sobre mim.
E agora… Que novo decreto – propalam – é este que o general acaba de proclamar em toda a cidade?
O que sabes? Ouviste algo? Ou ignoras que atacam a entes queridos nossos – malefícios vindos de inimigos? “
Assim Antígona, personagem de Sófocles, diz a irmã Ismene, sobre o édito de Creonte que proibia o enterro de seu irmão Polinice.
Para que não nos alonguemos na tragédia, e recomendando a leitura, Sófocles narra a maldição de Édipo que perdeu o trono de Tebas para Creonte.
Foi lançada uma maldição sobre Édipo por unir-se Jocasta, sua mãe, mesmo desconhecendo esse fato. Édipo descobriu o enigma da Esfinge e se tornou rei de Tebas, porém foi condenado por ter matado o pai e por ter casado com a mãe.
Provocou a ira dos deuses e também contra Tebas.
Culpado, Édipo arranca os próprios olhos e passa a vagar sobre a terra, porém não evitou que sua maldição alcançasse seus filhos Ismena, Antígona, Etéocles e Polinice.
Por isso, Creonte determina que o corpo de Polinice não pode ser enterrado, restando insepulto.
Antígona se rebela afirmando que há uma lei universal, maior que a lei dos homens, que garante um mínimo de dignidade ao ser humano e que tem o direito de enterrar o irmão.
Creonte, é um déspota, representa o soberano, o Estado, e aqui temos o embate entre o direito natural e a Lei.
Poderia Antígona enterrar o irmão ou a Lei deveria prevalecer?
Pontuamos aqui para uma analogia ao caso do ex-presidente Lula.
Nos últimos meses o ex-presidente tem sofrido uma séria de perdas afetivas e devastadoras.
Já houvera perdido a esposa antes da prisão, depois perdeu amigo, irmão e agora seu neto em 1º de março.
Com a morte, surgiu o debate sobre o direito de Lula velar e enterrar o próprio neto.
Ao contrário de Antígona, não há que se fazer muito esforço para entender que há basilares princípios de direitos humanos,direito natural, constitucional e infraconstitucional que garantem a Lula velar o neto.
Direito não só de Lula, mas de qualquer preso.
Após o nefasto evento, as redes sociais, como sempre, passaram a nos mostrar manifestações de ódio e algumas outras de comemoração do falecimento de uma criança de 7 anos.
Surge a questão incomoda: como pudemos chegar a este ponto?
Estaríamos todos sujeitos a liberação desenfreada da perversão social e política descrita por Elisabeth Roudinesco no livro “A parte obscura de nós mesmos “?
Roudinesco descreve que os maus têm seu lugar na sociedade porque assumem as tendências que habitam a vida humana e que não são admitidas, visto que foram recalcadas, como afirma Freud. São assim, uma parte da humanidade presente em todos, cujas tentativas de disfarces não têm fim: exibe a própria negatividade (ROUDINESCO, 2008, p. 13).
A sociedade brasileira caminha a passos largos para a perversidade e para a banalização descrita também por Arendt (1999). Hanna Arendt afirma que o mal se torna banal por se tornar algo considerado normal a todos.
A crueldade e perversidade são inerentes ao homem, mas desde sempre foram objetos da imposição de freios morais, seja pela religião, direito natural e direito escrito.
O direito de enterrar os mortos encontra abrigo de fácil interpretação no art. 120 da Lei de Execuções Penais:
“ (…) poderão conseguir permissão para sair em caso de “falecimento ou doença grave do cônjuge, companheira, ascendente, descendentes, ou irmão”.
Não há qualquer dúvida quanto a isso, especialmente porque a leitura e interpretação do texto da Lei deve ser feita em conformidade com a Constituição.
O texto constitucional traz logo no início:
Art. 1o – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui- se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana (…).
Como vimos, concluímos que não é preciso viajarmos para meados de 442 AC para compreendermos que as pessoas tem direito de velar e enterrar seus entes queridos.