Você já parou para pensar na influência do direito penal, inclusive em situações de risco a saúde como a que estamos vivendo?
Como pode o direito penal auxiliar o Estado nas medidas de proteção ao coletivo, especialmente diante do e reconhecimento de pandemia e do estado de calamidade pública decretados?
Há certas condutas que podem, nas circunstâncias relativas às medidas emanadas pelas autoridades competentes, destinadas ao enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do Coronavírus (COVID-19), com o intuito de evitar ou minimizar a proliferação rápida do contágio, ser consideradas criminosas. Vejamos algumas delas:
CRIMES CONTRA A SAÚDE PÚBLICA
Dentre os crimes contra a saúde pública podemos evocar a infração de Medida sanitária preventiva prevista no artigo 268 do Código Penal.
Art. 268 – Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:
Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.
Por tratar-se de norma penal em branco, exige-se a infringência de ordem emanada do poder público, em forma de outra lei, medidas provisórias, decretos, portarias ou mesmo resoluções. Meras recomendações ou sugestões, contudo, não se enquadram por faltar-lhes força mandatória.
Então, a título exemplificativo, temos que a violação à uma determinação do poder público para limitar o número de pessoas em certos ambientes ou estabelecer regras e limites para aglomerações, com vistas a impedir a propagação de doença extremamente grave e altamente contagiosa, poderá configurar crime previsto no art. 268 do Código Penal, Medida sanitária preventiva.
CRIMES DE PERICLITAÇÃO DA VIDA E DA SAÚDE
A norma trazida pelo artigo 131 do Código Penal tipifica o crime de perigo de contágio de moléstia grave, que busca responsabilizar o indivíduo que pratica atos capazes de resultar na transmissão de moléstia grave a outra pessoa:
Art. 131 – Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Trata-se de crime de perigo, ou seja, não há necessidade do contágio de terceiro, bastando a exposição para sua consumação. Nas palavras do nobre professor Miguel Reale Junior, “Havendo esta (contaminação), não mais se está a falar de crime de periclitação da vida ou a incolumidade pública, mas sim, verdadeiramente, de agressão, a qual pode se consubstanciar em lesão corporal gravíssima, na modalidade de moléstia incurável”[1]. Cesar Roberto Bitencourt não compartilha de tal orientação. Para ele “ na medida em que há ocorrência da “própria lesão”, isto é, ainda que o contágio se concretize, não alterará a tipificação da conduta, pois representará o simples exaurimento do crime definido no artigo 131 (e não se poderá afirmar que seja uma tentativa sui generis).[2]
Importante ressaltar que a tipificação penal só se concretiza quando o agente pratica a ação de querer transmitir a doença, ou seja, precisa necessariamente ter conhecimento de que possui a doença e ter a intenção de transmissão. Isso quer dizer que o autor precisa ter o elemento de vontade e consciência (dolo), já que impraticável a conduta em sua forma culposa, por ausência de previsão legal.
Além disso, ressaltamos que “não cabível a figura do dolo eventual, isto é, assumindo o risco de transmiti-la a alguém. Nesse caso, porém, o tipo descrito no artigo 131 não se aperfeiçoa, pois falta-lhe o elemento subjetivo especial, que é o fim de transmitir moléstia grave”[3].
Isso quer dizer que o indivíduo, ciente ser portador de moléstia grave contagiosa, ao sair do isolamento determinado pelas autoridades médicas ou judiciais, com a intenção propagá-la, poderá incorrer em crime de perigo de contágio de moléstia grave, cuja pena pode chegar a 4 anos de reclusão.
Ainda dentre os crimes de periclitação da vida e da saúde temos ainda o delito previsto no artigo 132 do Código Penal, qual seja, perigo para a vida ou saúde de outrem:
Art. 132 – Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:
Pena – detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.
A regra do artigo 132 do Código Penal não mais vem com o condão de tratar doenças graves ou venéreas, mas sim com o intuito de proteger sobre qualquer situação de perigo iminente a vida ou a saúde.
Aqui, verifica-se como típica “qualquer ação capaz de expor concretamente a perigo direto ou iminente. Dessa forma, constata-se como típica a conduta de expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto ou iminente, desde que o fato não constitua crime mais grave”[4].
Para a caracterização do delito se faz necessária uma conduta direta e iminente, ou seja, direto na medida em que se comete a ação em face de determinada vítima e iminente por ser caracterizado urgente. O perigo produzido pela conduta do agente deve expor pessoa certa e determinada, o que não impede que mais de uma pessoa possa ser exposta ao perigo, desde que perfeitamente individualizada.
“O elemento subjetivo do crime reside no dolo de perigo; o agente possui a consciência do perigo que está causando com a sua ação ou omissão; sabe que, com essa prática, expõe a vida ou a saúde de determinada pessoa a risco, mas nada faz para mudar sua atitude”[5]. Sendo assim é desnecessário o dano, sendo suficiente a exposição a perigo. No mais, o agente deve querer, conscientemente, o estado de perigo ou, no mínimo, admiti-lo, assumindo o risco de produzi-lo. Diante disso, cabível a figura de dolo eventual, “o risco de criar com a ação ou omissão está presente na consciência do agente, que, apesar disso, realiza a conduta e acaba colocando efetivamente em perigo a vida ou a saúde de outrem (…) Apesar de não quere-lo, inescrupulosamente não se abstém, permanecendo indiferente a probabilidade de dano, ou, na linguagem do código penal, “assumindo o risco de produzi-lo””[6].
Ressaltamos aqui importes considerações relativas ao dolo eventual, já que não cabível nas demais figuras aqui apresentadas. Isso quer dizer que aquele que desobedece à ordem de quarentena, ainda que sem intenção de infecção de terceiro, mas assumindo o risco de fazê-lo, incorre no crime de perigo para a vida ou saúde de outrem, cuja pena pode chegar a um ano de detenção.
Ainda não admite forma culposa e se consuma com a exposição ao perigo. Nesse sentido: “Na configuração do delito previsto no art. 132 do Código Penal, é mister que o fato não constitua crime mais grave, pois trata-se de figura delituosa eminentemente subsidiária ou supletiva”. (TACrim – RT 338/3I4). Mas, se sobrevier o dano, efetivamente, responderá o agente, conforme o caso, por lesão corporal culposa ou homicídio culposo, pois a eventual morte da vítima, embora precedida de enfermidade decorrente da conduta do agente, não tem o condão de qualificar, como resultado mais grave, a conduta antecedente do agente. Enfim, é absolutamente inaplicável a previsão do crime preterdoloso (Art. 129, §3 do CP).
Diante de tudo que foi exposto, podemos verificar que o direito penal, como ultima racio, vem com o condão de penalizar aquele que, assumindo ou não do risco de prejudicar terceiro, tem a intenção de contribuir para a disseminação de doença considerada grave, podendo colocar em risco um elevado número de pessoas, causando um dano irreparável à sociedade.
[1]JUNIOR, Miguel Reale, Código Penal Comentado. Ed Saraiva Jur.2017
[2] BITENCOUT, Cesar Roberto. Tratado de direito Penal. Vol. 2. Crimes contra pessoa. 2019. Ed Saraiva JUR.
[3] BITENCOUT, Cesar Roberto. Tratado de direito Penal. Vol. 2. Crimes contra pessoa. 2019. Ed Saraiva JUR.
[4] JUNIOR, Miguel Reale, Código Penal Comentado. Ed Saraiva Jur.2017
[5] JUNIOR, Miguel Reale, Código Penal Comentado. Ed Saraiva Jur.2017
[6] BITENCOUT, Cesar Roberto. Tratado de direito Penal. Vol. 2. Crimes contra pessoa. 2019. Ed Saraiva JUR.